Nos últimos dias desisiti, e depois desisti de desistir, de usar esse blog para falar sobre o mais destacado expoente do pensamento conservador brasileiro atual, o filósofo Olavo de Carvalho. Mais destacado, sim, porque muito embora nomes como Rachel Sheherazade e Reinaldo Azevedo sejam mais conhecidos, não gozam do mesmo status teórico que Carvalho goza; ao mesmo tempo, sem possuir o reconhecimento acadêmico de um José Osvaldo de Meira Penna ou de um Luiz Felipe Pondé, suas ideias parecem ter uma influência muito mais ampla que qualquer pensador da Universidade. ("Ampla" talvez não descreva bem o fenômeno. Seus admiradores lhe tecem elogios de uma maneira e com uma entrega que só vejo igual na relação entre ídolos pop e seus fãs, em pouco ou nada se parecendo com o tipo de adesão consciente e crítica que se imagina haver entre um professor e seus alunos).
Minha intenção inicial era resenhar "O Jardim das Aflições", publicado em 1996. Escolhi-o por três motivos: primeiro, porque é considerado por seus leitores a obra-prima de O. de C.; segundo, porque é um livro concebido como uma obra completa, escrita para ser um livro, e não uma coletânea de artigos publicados na imprensa, como é o caso da minha alternativa mais natural para uma resenha: "O Imbecil Coletivo", livro publicado no mesmo ano que o Jardim, e que o tornou conhecido; e terceiro, é no Jardim das Aflições, diz-se, que se encontra o núcleo da teoria política de Carvalho.
Pois bem. Não cabe a mim concordar ou discordar da classificação de "O Jardim das Aflições" como obra-prima - já que não li tudo que seu autor escreveu, não tenho elementos para comparar. Quanto à unidade do trabalho como um livro, o fato de tratar-se de um produto pensado para ser lido da maneira que eu o leria me bastava, e eu não tenho nem formação nem interesse para analisar as suas características literárias. Resta, assim, aquilo que gosto de ler, da falar e escrever sobre: teoria política.
E foi tomando conhecimento da teoria política de Olavo de Carvalho que eu desisti de falar sobre a teoria política de Olavo de Carvalho.
O problema fundamental do argumento de "O Jardim das Aflições" é sua excessiva dependência de autores mais ligados à religião, ao misticismo e à pseudociência que à tradição filosófica; em alguns casos, a fonte sequer é citada. Além disso, e mais grave, em várias passagens o autor não deixa claro o que quer dizer com alguns conceitos, o que o leva à conclusões à respeito desses mesmos conceitos que são, para dizer o mínimo, confusas.
O ponto original e interessante do livro, desconsideradas as ressalvas acima, é a noção de Império: a ideia de que, desde a queda do Império Romano, o Ocidente vem tentando reconstrui-lo através de uma unidade política unificada: o Sacro Império Romano-Germânico de Carlos Magno, a Expansão Ultramarina Portuguesa e Espanhola, a Era Napoleônica, entre outras, até a hegemonia americana atual. Mas, mesmo aqui, há um pecado: ao invés de tentar construir esse conceito de Império com base em aspectos ideológicos. (na mesma linha que Edward Said brilhantemente faz em "Orientalismo", ao descrever a "invenção" do Oriente pelo Ocidente) O. de C. prefere o caminho mais fácil de citar eventos históricos e impérios reais, o que o deixa, ao falar do nosso tempo, sem uma referência clara de onde colocar as intenções "imperiais" e acabe por apelar para teorias conspiratórias. Ele próprio, em certa medida, assume isso no posfácio, ao reconhecer que os EUA não tinham a unidade ideológica que ele imaginava ter e que é imprescindível para a sua teoria.
E então eu achei que o Olavo não tinha mais uma teoria política pra chamar de sua, e como não estava interessado apenas nos seus vídeos e artigos polêmicos, como tampouco nos seus caros seminários de filosofia, deixei o assunto pra lá.
Mas, algum tempo depois, o assunto veio atrás de mim. Estava entretido no preparo do jantar, quando meu filho apareceu em casa com um colega de escola para fazer um trabalho de Geografia. Como parece ser cada vez mais comum, ignoraram a possibilidade de pesquisar em textos escritos e foram atrás de algo de acesso menos trabalhoso - vídeos do YouTube. Assim, cortei cebolas e tomates enquanto o som das caixas do computador chegava à cozinha ora com videoaulas, ora com videoclipes. E aí a receita quase desandou quando comecei a escutar um discurso ensandecidamente repleto de palavrões, atacando todos os males do comunismo e a ameaça que os "vermelhos" representam nos dias atuais. Fui conferir: era o Olavo de Carvalho.
Os meninos me contaram que o professor lhes havia pedido um trabalho sobre o comunismo, mas que era necessário pesquisar o opinião de O. de C. sobre o tema. Mais que isso, apresentara o filósofo como um homem que lera "centenas de livros" sobre o marxismo/comunismo/socialismo (que o professor parece ter tratado como sinônimos) e que era capaz de "destruir" qualquer comunista num debate (dada a raridade de se encontrar um comunista hoje em dia, essa afirmação é de difícil comprovação).
Se Olavo de Carvalho já é debatido em aulas do ensino fundamental, não posso deixar de falar das ideias dele. Mas, se como afirmei, ele não tem uma teoria política estruturada, de que ideias eu vou falar? Voltei à cozinha, e o cheiro de alho frito no azeite logo me trouxe a resposta: se não há elementos para discutir o pensamento de O. de C., e esse pensamento vem se tornando cada vez mais popular, então o caminho é investigar o contexto histórico que permitiu o surgimento e a disseminação das suas ideias. Ou, parodiando o título do clássico inacabado de Norbert Elias, a Sociologia de um Reaça - só que, enquanto o sociólogo alemão demonstra com maestria como a estrutura limita a agência, eu humilde e porcamente tentarei mostrar como a mente (social) vazia pode ser a oficina do capeta do extremismo.
Como bem sabem os críticos e os defensores de Olavo de Carvalho, antes de filósofo, ele se dedicava à Astrologia. O verbete que lhe é dedicado na Wikipedia lista suas obras, e uma breve pesquisa demonstra uma transição gradual da Astrologia para a Filosofia e, daí, para a polêmica. Ressalvando que a) sempre existe um intervalo de tempo entre a redação e a publicação (ainda mais se tratando de coletâneas, que são várias); b) tanto seus escritos de astrologia tem aspirações mais filosóficas quanto seus trabalhos de filosofia dependem muito de autores ligados ao pensamento religioso e místico, o que torna classificações "puras" um tanto problemáticas; e c) seus artigos de polêmica ganham importância em sua carreira mais por causa da recepção que da vontade consciente do autor de ampliar sua quantidade; podemos, grosso modo, estruturar sua obra em três períodos: I) a fase religiosa-mística, que vai da publicação de "A Imagem do homem na Astrologia" (1980) até Fronteiras da Tradição (1986); II) a fase de transição, crescentemente filosófica, que muito provavelmente começa no final da década de 80, mas cujas publicações datam de 1992 ("Símbolos e Mitos no Filme 'O Silêncio dos Inocentes'") a 1996 ("Aristóteles em Nova Perspectiva") e III) a fase filosófico-polemista, que começa em 1996, com a publicação de "O Imbecil Coletivo" e vai até os dias atuais. O silêncio entre 1986 e 1992 é o ponto de virada entre as fases I e II, assim como "O Jardim das Aflições", é o ponto de virada entre as fases II e III.
As permanências e as migrações de O. de C. por essas três fases, bem como a reputação que ele conquistou em cada um delas depende tanto de sua trajetória pessoal quanto dos acontecimentos do mundo ao seu redor. Vejamos:
O final dos anos 80 marcam, no Brasil e no mundo, um duplo refluxo que devem ter impactado a vida do nosso filósofo, então astrólogo: a queda do bloco soviético e fim da popularidade do misticismo, com a Era de Aquário dando lugar à Neurolinguística (que Carvallho parece não gostar) e ao crescimento do neopentecostalismo. Ora, Olavo, místico e anticomunista, deve ter percebido que seu mundo ruía. Encerra-se sua fase I, vem o silêncio de alguns anos, quando ele muito provavelmente reorganiza sua vida (numa palestra disponível na internet, ele afirma que "tinha pouco dinheiro" nessa época).
Carvalho então passa a escrever sobre filosofia, colaborar com vários veículos de imprensa, e começa a fase II, estritamente pessoal: é o momento em que amadurece como autor, adquirindo repertório e respeitabilidade suficiente para escrever "O Jardim..." e tornar-se conhecido com a coletâneo "O Imbecil Coletivo". Fim da fase II.
Começa a fase III: durante a segunda metade da década de 90, Olavo de Carvalho torna-se pensador e celebridade do conservadorismo brasileiro, ministra cursos de filosofia, funda o site "Mídia sem Máscara" e, por conta de seu radicalismo cada vez maior, começa a sumir dos veículos de grande circulação, muito embora seu grupo de admiradores ganhe, lentamente, força e coesão. No panorama internacional, o triunfo do neoliberalismo explica essa parte da sua trajetória: o projeto pseudo-libertador do Consenso de Washington, adotado na era FHC no Brasil, relegou qualquer ideologia (exceto a si própria) como velharia histórica; assim, o reacionarismo olaviano foi gradativamente virando nicho no mercado das ideias, praticado apenas por alguns amantes do fanatismo e por generais de pijama.
E assim teria continuado, não fossem dois acontecimentos ocorridos durante a primeira década do terceiro milênio.
O primeiro foi a ascenção do PT ao poder, em 2002, partido que Olavo sempre vinculara ao comunismo internacional em sua nova versão ultrasecreta e ultra-poderosa, cujo ramo latinoamericano era o Foro de São Paulo - ascenção que acabou fornecendo, na visão dele e de seus discípulos, provas irrefutáveis da veracidade de suas teorias conspiratórias.
O segundo foi a crise global de 2008, que ao acabar com a hegemonia neoliberal, permitiu o retorno ao debate de várias alternativas - entre elas, o radicalismo de direita de O. de C. Quando os efeitos da crise chegaram ao Brasil, já no governo Dilma, o descontentamento até então difuso de setores de classe média/média baixa que se consideravam "esquecidos" pelo governo buscou palavras de ordem e foi às ruas (bem, não exatamente nessa ordem): e entre essas palavras de ordem, os bordões de Olavo voltaram à moda.
Enfim, um vácuo ideológico (o fim da moda mística e o fim do comunismo) permitiu que Olavo de Carvalho se reposicionasse no mundo; um segundo vácuo ideológico (a crise de 2008) o reposicionaram novamente. Pode parecer triste para aqueles que, como eu, não concordam com suas opiniões. Mas fica o alento de que se os ventos da história o favorecem hoje, podem virar para outro lado, amanhã.
(E também fica o prazer sarcástico de explicar por meio de mecanismos não-individuais a vida de um homem que acredita na supremacia da consciência individual).