quinta-feira, 4 de junho de 2015

A Mercantilização da Competência e a Consequente Meritocracia da Bandidagem - Primeira Parte

Acabei de ler o livro "Um País Sem Excelências e Mordomias", da jornalista Cláudia Wallin (Geração Editorial, 2014), expansão de uma série de reportagens que a autora fez para o Jornal da Band, em 2010, sobre a "classe" política da Suécia. "Classe", no caso do país nórdico, tem de ser entre aspas mesmo: o primeiro-ministro lava sua própria louça e vai de trem para o trabalho (não existem carros oficiais exclusivos); apartamentos funcionais para deputados tem 19 metros quadrados (e aluguéis são cobrados caso ele permita que um familiar more lá com ele) e pagam material de escritório do próprio bolso, com um salário que é algo em torno de 50% superior ao de um professor primário; vereadores não recebem salário, apenas um ressarcimento pelos descontos que os eventuais empregadores fizerem por sua ausência no trabalho por conta da atividade política; e todos eles são tratados como "você" (sem doutores nem excelências).
Considerando o já conhecido e notório nível socioeconômico da país - a Suécia é uma das economias mais avançadas do mundo, além de contar com um amplo, generoso e bem-sucedido sistema de Welfare State, que até os anos 70 se dava ao luxo de pagar férias remuneradas para donas de casa - fiquei curioso de investigar de que maneira a incomum ausência de privilégios para políticos se relaciona com os resultados econômicos e sociais do país.
Por causa da duração provavelmente entediante do raciocínio que pretendo desenvolver aqui, vou dividi-lo em duas postagens, a parte final sendo publicada daqui uns poucos dias.
Meu ponto de partida não poderá ser outro senão a minha inspiração para a pergunta, isso é, o livro do Wallin. Não, isto não é uma resenha. Uma mini resenha, vá lá. Mas o livro tem uma riqueza de detalhes e informações tão interessante que qualquer resumo dele é incapaz de captar. Em suma, vale a leitura completa, e o que apresento nos próximos parágrafos é só uma contextualização para apresentar minhas próprias ideias.
Excluindo prefácio, introdução, apresentação, bem como um capítulo final sobre o Brasil que não foi escrito por ela, a autora divide seu trabalho sobre a política sueca em quatro capítulos.
No primeiro, apresenta o já mencionado tratamento espartano a que tem direito os políticos do país. A não deferência do tratamento tem a ver, segundo ela e aqueles a quem ela entrevistou, com a ideia de que os representantes devem viver nas mesmas condições que os representados, caso contrário, não governariam em prol destes.
No segundo capítulo conhecemos o modelo de transparência política da Suécia - o mais antigo do mundo, cuja lei já tem mais de 200 anos. O grande aparato institucional que o sustenta pode ser simplificado num exemplo simples: qualquer cidadão, sem necessidade de se identificar, pode ter acesso aos emails de qualquer agente público (incluindo os da polícia secreta!) bem como as notas fiscais originais dos gastos por eles efetuados.
O terceiro capítulo trata de como os suecos lidam com a corrupção, e e eles lidam com a corrupção de uma maneira que beira a paranoia. Os inventores do ombudsman (tanto da palavra quanto do cargo) têm um sistema que envolve agências estatais, veículos de comunicação e cidadãos comuns com bom nível educacional (os melhores índices de UE), todos imbuídos de um espírito que considera a corrupção não apenas errada, mas uma ameaça à democracia e às políticas sociais do Estado.
Finalmente, no quarto capítulo Wallin faz um breve relato histórico da transformação de uma Suécia agrária, faminta e atrasada até a metade do século XIX, num dos países industriais mais avançados do mundo e com os melhores indicadores sociais do planeta, através de uma revolução institucional que aboliu os privilégios dos ocupantes do poder, transformou a monarquia em objeto decorativo e universalizou e educação. O impulso cultural dessa transformações, afirma a autora e os cientistas políticos entrevistados para o livro, tem suas raízes na tradição igualitária dos vikings, pioneiros da democracia participativa com seus ting.
Agora, voltando à nossa questão. É evidente que o desenvolvimento econômico da Suécia deveu-se à uma mão-de-obra capacitada pela educação universal. Também é evidente que, sendo a educação universal, a industrialização não gera desigualdade de renda entre capacitados e não capacitados. E é igualmente evidente que um povo instruído, e com níveis semelhantes de vida material, tem tanto a capacidade de negociar melhor os termos da relação capital/trabalho, porque tem interesses em comum, bem como de exigir que seus governantes trabalhem para atender esses interesses e não pensem só em si mesmos.
Mas a pergunta que fica é: porque a elite sueca, lá nos século XIX, permitiu que isso acontecesse? Seriam os nobres corruptos e os parasitas da coisa pública da Escandinávia mais incompetentes em manter o status quo do que, por exemplo, seus similares brasileiros?
A resposta natural é a de que a cultura de igualdade dos vikings, reprimida naquele momento da história da Suécia (o do Império, entre os séculos XVI e XVIII), aproveitou alguma instabilidade institucional persistente para ressurgir e reorganizar as relações de poder. E a resposta deve ser essa mesma: o século XIX foi turbulento para os monarcas suecos, que tiveram de lidar com Napoleão, com a Rússia e com um ex-território seu, a Finlândia.
Visto dessa maneira, o projeto de um sistema político com pouca corrupção e muito senso dever ganha ares de utopia para aqueles países que nunca foram habitados por vikings, e de  puro delírio para os que - como nós - herdaram uma ordem social baseada nas distinções e privilégios de classe e raça que os impérios coloniais ibéricos tão bem souberam espalhar pelo mundo. Mas não é e não precisa ser assim.
Mas isso eu conto em detalhes no próximo post.

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