quinta-feira, 4 de junho de 2015

A Mercantilização da Competência e a Consequente Meritocracia da Bandidagem - Segunda Parte

(Essa postagem - como o próprio título já deixa claro - é a segunda (e última) parte de um exercício investigativo, ou rascunho de pesquisa, sobre as relações entre os privilégios exclusivos da classe política e os resultados econômicos e sociais numa dada sociedade. Inspirado pelo livro "Um País sem Excelências nem Mordomias", da jornalista Claudia Wallin, reflito sobre o caso da Suécia, um dos países mais desenvolvidos economica e socialmente do mundo, onde nenhum político tem imunidade parlamentar, entre outras peculiariedades. Se a primeira parte desse post não estiver aí embaixo, ao alcance de uma rolagem de tela, você pode encontrá-la aqui).

Os gigantes de cabelo loiro que navegavam pelo Mar do Norte , aterrorizando com os seus machados os povos das atuais Inglaterra e França, há muito já haviam desistido do seu assentamento no Novo Mundo (na atual Terra Nova, Canadá) quando Madison e seus compatriotas forjaram o que viria a ser conhecido como Estados Unidos da América.
Se o hábito igualitário das assembleias ting viajou de barco da Dinamarca até a Inglaterra, e manteve-se vivo por alguns séculos até embarcar de novo, dessa vez rumo à América, no Mayflower com os puritanos que foram fundar as 13 colônias - onde uma estrutura política baseada em assembleias populares floresceu - é coisa que eu não sei dizer se ocorreu. Da mesma forma, tampouco sei se ao saquear Paris no século IX, os vikings deixaram em troca alguma orientação para a política local. Mas minha ignorância nessa questão, por sorte, não vai me atrapalhar aqui: estou interessado em observar não a organização popular, mas a maneira como os representados veem seus representantes, comparando o ideal de representação que surgiu nos EUA e na França, no final do século XVIII, com o que ocorre na Suécia atual.
Nesse sentido, convém mencionar que dois pensadores e homens políticos fundamentais para a fundação do governo representativo, o já citado Madison, nos EUA, e Siéyès, na França, entendiam "representação" como algo diferente de "democracia".
O americano, em suas cartas em defesa da Federação, afirma que o papel do sistema representativo é eleger "os mais aptos" a impedir "as paixões desordenadas" que podem surgir no meio do povo, e decidir o que deveria ser feito de uma maneira mais ponderada do que o seria através de uma cega obediência ao clamor popular - o rei tinha sido expulso, mas era necessário outro tipo de nobreza para governar o país: uma nobreza eleita, numa época em que "democracia" significava escolher os governantes por sorteio.
Já o francês entendia que a complexidade que a sociedade, e consequentemente a política, atingira nos tempos modernos não nos permitiria que esta última pudesse ser gerida da mesma maneira que era feita na Grécia Antiga, com a participação efetiva de todos os cidadãos. As pessoas tinham outras coisas para fazer, e então era necessário que alguns, escolhidos por suas habilidades, se dedicassem exclusivamente à atividade de governar: enquanto aqueles tocariam suas vidas particulares, estes tocariam a vida pública de todos.
Daí raciocina-se que o governo representativo não é o governo dos nossos representantes - pelo menos não no significado que damos à "representante" nos dias atuais. E também conclui-se que, muito embora um grande número de modificações tenha sido feita no modelo de governo representativo (visando justamente aproximar a "representação" de "democracia") sua espinha dorsal - as eleições - continua intacta, o que tem duas consequências nos dias atuais: uma crise de representação e de falta de confiança na democracia, em nível mundial; e - o tema da nossa discussão - a formação de uma classe política profissional, que só precisa se preocupar com o povo em tempo de eleições, e que, por serem consideradas "autoridades em nome do povo" que substituíram as "autoridades em nome de Deus" que eram os reis, acabaram acumulando vantagens e privilégios típicos da uma nobreza.
Mas na Suécia, não. Lá os políticos se consideram povo e o povo considera os políticos como povo, não trazendo, a atividade política, nenhum status de autoridade ou nobreza, e, evidentemente, nenhuma vantagem material. Mas será que os representantes do povo sueco tem o mesmo status social dos seus representados porque lhes faltam vantagens materiais, ou será que a falta de status os impediu que acumular privilégios?
Evitando uma infrutífera discussão entre uma abordagem materialista e outra de viés mais culturalista, vamos nos limitar a entender que existem "afinidades eletivas" entre a ética igualitária dos antigos nórdicos e a institucionalização de um governo representativo (adaptada à sua cultura) no qual a classe política goza dos mesmos direitos que os seus eleitores - nem mais, nem menos.

Para concluir, devemos retornar à questão inicial: a ausência de uma distinção de classe, e de vantagens materiais, que sejam exclusivas da classe politica, leva uma dada sociedade a ser mais bem sucedida dos pontos de vista econômico e social? Se ficarmos apenas no nível do "estudo de caso" da Suécia, me atrevo a dizer que sim. Uma vez que os políticos suecos não têm capacidade jurídica de enriquecer às custas do Estado, e como não gozam de privilégios materiais pelo mero exercício de sua atividade, a única maneira de melhorar sua vida é melhorando a vida de todos.
A existência de muitos privilégios (que costuma ser justificada como forma de "atrair os melhores cérebros"), além de eliminar o incentivo à  atuação política responsável que descrevi acima (por que os melhores cérebros fariam algo por nós?) tem uma consequência adicional, bem mais sinistra: se a política oferece muito àqueles que dela desejem se ocupar, despertará o interesse não daqueles que têm paixão (e talento) para a política, mas daqueles que têm paixão pelas vantagens oferecidas. Enfim, mercantilizar a competência só serve para criar uma meritocracia da ganância, e não raro da bandidagem.

Finalmente, restou amarrar uma ponta que eu deixei solta no final da primeira parte dessa postagem: serão os suecos (e os noruegueses, finlandeses, islandeses e dinamarqueses) privilegiados pela herança cultural que receberam, enquanto nós, pobres latinos, fizemos um casamento maldito entre o patrimonialismo ibérico e a exaltação da "nobreza eleitoral", criando políticos que parecem mais com Nabucodonosor que com seus eleitores?
Não acredito que precisemos ter DNA escandinavo para mudarmos o rumo da nossa política. Basta vontade e pressão, coordenadas. Mas para quem procura por um incentivo... Pierre Clastres, em seu "A Sociedade Contra o Estado" (que eu resenhei um tempo atrás, neste link) ao estudar o papel da chefia entre as tribos indígenas do Brasil, observou que o chefe nada mais era que um mediador de conflitos sobre o qual, além disso, pesava a responsabilidade de garantir o bem-estar de todos os membros da tribo, a despeito do seu próprio.
Pronto, já temos nossos vikings. 

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