quinta-feira, 16 de julho de 2015

A Cismogênese do Facebook

Também costumo publicar no Facebook, em textos menores, geralmente comentando alguma notícia sobre a qual forneço o link (ou seja, coisa que todo mundo faz no Facebook).
Acho interessante divulgar aqui a página do Cismogênese na rede social do Zuckerberg, principalmente porque descobri que o Google não indexa as páginas do Facebook.

Clica lá, curta e me dê uma força, nesses tempos em que quase ninguém se interessa em discutir sobre política.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Sociologia de um Reaça

Nos últimos dias desisiti, e depois desisti de desistir, de usar esse blog para falar sobre o mais destacado expoente do pensamento conservador brasileiro atual, o filósofo Olavo de Carvalho. Mais destacado, sim, porque muito embora nomes como Rachel Sheherazade e Reinaldo Azevedo sejam mais conhecidos, não gozam do mesmo status teórico que Carvalho goza; ao mesmo tempo, sem possuir o reconhecimento acadêmico de um José Osvaldo de Meira Penna ou de um Luiz Felipe Pondé, suas ideias parecem ter uma influência muito mais ampla que qualquer pensador da Universidade. ("Ampla" talvez não descreva bem o fenômeno. Seus admiradores lhe tecem elogios de uma maneira e com uma entrega que só vejo igual na relação entre ídolos pop e seus fãs, em pouco ou nada se parecendo com o tipo de adesão consciente e crítica que se imagina haver entre um professor e seus alunos).
Minha intenção inicial era resenhar "O Jardim das Aflições", publicado em 1996. Escolhi-o por três motivos: primeiro, porque é considerado por seus leitores a obra-prima de O. de C.; segundo, porque é um livro concebido como uma obra completa, escrita para ser um livro, e não uma coletânea de artigos publicados na imprensa, como é o caso da minha alternativa mais natural para uma resenha: "O Imbecil Coletivo", livro publicado no mesmo ano que o Jardim, e que o tornou conhecido; e terceiro, é no Jardim das Aflições, diz-se, que se encontra o núcleo da teoria política de Carvalho.
Pois bem. Não cabe a mim concordar ou discordar da classificação de "O Jardim das Aflições" como obra-prima - já que não li tudo que seu autor escreveu, não tenho elementos para comparar. Quanto à unidade do trabalho como um livro, o fato de tratar-se de um produto pensado para ser lido da maneira que eu o leria me bastava, e eu não tenho nem formação nem interesse para analisar as suas características literárias. Resta, assim, aquilo que gosto de ler, da falar e escrever sobre: teoria política.
E foi tomando conhecimento da teoria política de Olavo de Carvalho que eu desisti de falar sobre a teoria política de Olavo de Carvalho.
O problema fundamental do argumento de "O Jardim das Aflições" é sua excessiva dependência de autores mais ligados à religião, ao misticismo e à pseudociência  que à tradição filosófica; em alguns casos, a fonte sequer é citada. Além disso, e mais grave, em várias passagens o autor não deixa claro o que quer dizer com alguns conceitos, o que o leva à conclusões à respeito desses mesmos conceitos que são, para dizer o mínimo, confusas.
O ponto original e interessante do livro, desconsideradas as ressalvas acima, é a noção de Império: a ideia de que, desde a queda do Império Romano, o Ocidente vem tentando reconstrui-lo através de uma unidade política unificada: o Sacro Império Romano-Germânico de Carlos Magno, a Expansão Ultramarina Portuguesa e Espanhola, a Era Napoleônica, entre outras, até a hegemonia americana atual. Mas, mesmo aqui, há um pecado: ao invés de tentar construir esse conceito de Império com base em aspectos ideológicos. (na mesma linha que Edward Said brilhantemente faz em "Orientalismo", ao descrever a "invenção" do Oriente pelo Ocidente) O. de C. prefere o caminho mais fácil de citar eventos históricos e impérios reais, o que o deixa, ao falar do nosso tempo, sem uma referência clara de onde colocar as intenções "imperiais" e acabe por apelar para teorias conspiratórias. Ele próprio, em certa medida, assume isso no posfácio, ao reconhecer que os EUA não tinham a unidade ideológica que ele imaginava ter e que é imprescindível para a sua teoria.
E então eu achei que o Olavo não tinha mais uma teoria política pra chamar de sua, e como não estava interessado apenas nos seus vídeos e artigos polêmicos, como tampouco nos seus caros seminários de filosofia, deixei o assunto pra lá.

Mas, algum tempo depois, o assunto veio atrás de mim. Estava entretido no preparo do jantar, quando meu filho apareceu em casa com um colega de escola para fazer um trabalho de Geografia. Como parece ser cada vez mais comum, ignoraram a possibilidade de pesquisar em textos escritos e foram atrás de algo de acesso menos trabalhoso - vídeos do YouTube. Assim, cortei cebolas e tomates enquanto o som das caixas do computador chegava à cozinha ora com videoaulas, ora com videoclipes. E aí a receita quase desandou quando comecei a escutar um discurso ensandecidamente repleto de palavrões, atacando todos os males do comunismo e a ameaça que os "vermelhos" representam nos dias atuais. Fui conferir: era o Olavo de Carvalho.
Os meninos me contaram que o professor lhes havia pedido um trabalho sobre o comunismo, mas que era necessário pesquisar o opinião de O. de C. sobre o tema. Mais que isso, apresentara o filósofo como um homem que lera "centenas de livros" sobre o marxismo/comunismo/socialismo (que o professor parece ter tratado como sinônimos) e que era capaz de "destruir" qualquer comunista num debate (dada a raridade de se encontrar um comunista hoje em dia, essa afirmação é de difícil comprovação).
Se Olavo de Carvalho já é debatido em aulas do ensino fundamental, não posso deixar de falar das ideias dele. Mas, se como afirmei, ele não tem uma teoria política estruturada, de que ideias eu vou falar? Voltei à cozinha, e o cheiro de alho frito no azeite logo me trouxe a resposta: se não há elementos para discutir o pensamento de O. de C., e esse pensamento vem se tornando cada vez mais popular, então o caminho é investigar o contexto histórico que permitiu o surgimento e a disseminação das suas ideias. Ou, parodiando o título do clássico inacabado de Norbert Elias, a Sociologia de um Reaça - só que, enquanto o sociólogo alemão demonstra com maestria como a estrutura limita a agência, eu humilde e porcamente tentarei mostrar como a mente (social) vazia pode ser a oficina do capeta do extremismo.

Como bem sabem os críticos e os defensores de Olavo de Carvalho, antes de filósofo, ele se dedicava à Astrologia. O verbete que lhe é dedicado na Wikipedia lista suas obras, e uma breve pesquisa demonstra uma transição gradual da Astrologia para a Filosofia e, daí, para a polêmica. Ressalvando que a) sempre existe um intervalo de tempo entre a redação e a publicação (ainda mais se tratando de coletâneas, que são várias); b) tanto seus escritos de astrologia tem aspirações mais filosóficas quanto seus trabalhos de filosofia dependem muito de autores ligados ao pensamento religioso e místico, o que torna classificações "puras" um tanto problemáticas; e c) seus artigos de polêmica ganham importância em sua carreira mais por causa da recepção que da vontade consciente do autor de ampliar sua quantidade; podemos, grosso modo, estruturar sua obra em três períodos: I) a fase religiosa-mística, que vai da publicação de "A Imagem do homem na Astrologia" (1980) até Fronteiras da Tradição (1986); II) a fase de transição, crescentemente filosófica, que muito provavelmente começa no final da década de 80, mas cujas publicações datam de 1992 ("Símbolos e Mitos no Filme 'O Silêncio dos Inocentes'") a 1996 ("Aristóteles em Nova Perspectiva") e III) a fase filosófico-polemista, que começa em 1996, com a publicação de "O Imbecil Coletivo" e vai até os dias atuais. O silêncio entre 1986 e 1992 é o ponto de virada entre as fases I e II, assim como "O Jardim das Aflições", é o ponto de virada entre as fases II e III.
As permanências e as migrações de O. de C. por essas três fases, bem como a reputação que ele conquistou em cada um delas depende tanto de sua trajetória pessoal quanto dos acontecimentos do mundo ao seu redor. Vejamos:
O final dos anos 80 marcam, no Brasil e no mundo, um duplo refluxo que devem ter impactado a vida do nosso filósofo, então astrólogo: a queda do bloco soviético e fim da popularidade do misticismo, com a Era de Aquário dando lugar à Neurolinguística (que Carvallho parece não gostar) e ao crescimento do neopentecostalismo. Ora, Olavo, místico e anticomunista, deve ter percebido que seu mundo ruía. Encerra-se sua fase I, vem o silêncio de alguns anos, quando ele muito provavelmente reorganiza sua vida (numa palestra disponível na internet, ele afirma que "tinha pouco dinheiro" nessa época).
Carvalho então passa a escrever sobre filosofia, colaborar com vários veículos de imprensa, e começa a fase II, estritamente pessoal: é o momento em que amadurece como autor, adquirindo repertório e respeitabilidade suficiente para escrever "O Jardim..." e tornar-se conhecido com a coletâneo "O Imbecil Coletivo". Fim da fase II.
Começa a fase III: durante a segunda metade da década de 90, Olavo de Carvalho torna-se pensador e celebridade do conservadorismo brasileiro, ministra cursos de filosofia, funda o site "Mídia sem Máscara" e, por conta de seu radicalismo cada vez maior, começa a sumir dos veículos de grande circulação, muito embora seu grupo de admiradores ganhe, lentamente, força e coesão. No panorama internacional, o triunfo do neoliberalismo explica essa parte da sua trajetória: o projeto pseudo-libertador do Consenso de Washington, adotado na era FHC no Brasil, relegou qualquer ideologia (exceto a si própria) como velharia histórica; assim, o reacionarismo olaviano foi gradativamente virando nicho no mercado das ideias, praticado apenas por alguns amantes do fanatismo e por generais de pijama.
E assim teria continuado, não fossem dois acontecimentos ocorridos durante a primeira década do terceiro milênio.
O primeiro foi a ascenção do PT ao poder, em 2002, partido que Olavo sempre vinculara ao comunismo internacional em sua nova versão ultrasecreta e ultra-poderosa, cujo ramo latinoamericano era o Foro de São Paulo - ascenção que acabou fornecendo, na visão dele e de seus discípulos, provas irrefutáveis da veracidade de suas teorias conspiratórias.
O segundo foi a crise global de 2008, que ao acabar com a hegemonia neoliberal, permitiu o retorno ao debate de várias alternativas - entre elas, o radicalismo de direita de O. de C. Quando os efeitos da crise chegaram ao Brasil, já no governo Dilma,  o descontentamento até então difuso de setores de classe média/média baixa que se consideravam "esquecidos" pelo governo buscou palavras de ordem e foi às ruas (bem, não exatamente nessa ordem): e entre essas palavras de ordem, os bordões de Olavo voltaram à moda.

Enfim, um vácuo ideológico (o fim da moda mística e o fim do comunismo) permitiu que Olavo de Carvalho se reposicionasse no mundo; um segundo vácuo ideológico (a crise de 2008) o reposicionaram novamente. Pode parecer triste para aqueles que, como eu, não concordam com suas opiniões. Mas fica o alento de que se os ventos da história o favorecem hoje, podem virar para outro lado, amanhã.

(E também fica o prazer sarcástico de explicar por meio de mecanismos não-individuais a vida de um homem que acredita na supremacia da consciência individual).

quinta-feira, 4 de junho de 2015

A Mercantilização da Competência e a Consequente Meritocracia da Bandidagem - Segunda Parte

(Essa postagem - como o próprio título já deixa claro - é a segunda (e última) parte de um exercício investigativo, ou rascunho de pesquisa, sobre as relações entre os privilégios exclusivos da classe política e os resultados econômicos e sociais numa dada sociedade. Inspirado pelo livro "Um País sem Excelências nem Mordomias", da jornalista Claudia Wallin, reflito sobre o caso da Suécia, um dos países mais desenvolvidos economica e socialmente do mundo, onde nenhum político tem imunidade parlamentar, entre outras peculiariedades. Se a primeira parte desse post não estiver aí embaixo, ao alcance de uma rolagem de tela, você pode encontrá-la aqui).

Os gigantes de cabelo loiro que navegavam pelo Mar do Norte , aterrorizando com os seus machados os povos das atuais Inglaterra e França, há muito já haviam desistido do seu assentamento no Novo Mundo (na atual Terra Nova, Canadá) quando Madison e seus compatriotas forjaram o que viria a ser conhecido como Estados Unidos da América.
Se o hábito igualitário das assembleias ting viajou de barco da Dinamarca até a Inglaterra, e manteve-se vivo por alguns séculos até embarcar de novo, dessa vez rumo à América, no Mayflower com os puritanos que foram fundar as 13 colônias - onde uma estrutura política baseada em assembleias populares floresceu - é coisa que eu não sei dizer se ocorreu. Da mesma forma, tampouco sei se ao saquear Paris no século IX, os vikings deixaram em troca alguma orientação para a política local. Mas minha ignorância nessa questão, por sorte, não vai me atrapalhar aqui: estou interessado em observar não a organização popular, mas a maneira como os representados veem seus representantes, comparando o ideal de representação que surgiu nos EUA e na França, no final do século XVIII, com o que ocorre na Suécia atual.
Nesse sentido, convém mencionar que dois pensadores e homens políticos fundamentais para a fundação do governo representativo, o já citado Madison, nos EUA, e Siéyès, na França, entendiam "representação" como algo diferente de "democracia".
O americano, em suas cartas em defesa da Federação, afirma que o papel do sistema representativo é eleger "os mais aptos" a impedir "as paixões desordenadas" que podem surgir no meio do povo, e decidir o que deveria ser feito de uma maneira mais ponderada do que o seria através de uma cega obediência ao clamor popular - o rei tinha sido expulso, mas era necessário outro tipo de nobreza para governar o país: uma nobreza eleita, numa época em que "democracia" significava escolher os governantes por sorteio.
Já o francês entendia que a complexidade que a sociedade, e consequentemente a política, atingira nos tempos modernos não nos permitiria que esta última pudesse ser gerida da mesma maneira que era feita na Grécia Antiga, com a participação efetiva de todos os cidadãos. As pessoas tinham outras coisas para fazer, e então era necessário que alguns, escolhidos por suas habilidades, se dedicassem exclusivamente à atividade de governar: enquanto aqueles tocariam suas vidas particulares, estes tocariam a vida pública de todos.
Daí raciocina-se que o governo representativo não é o governo dos nossos representantes - pelo menos não no significado que damos à "representante" nos dias atuais. E também conclui-se que, muito embora um grande número de modificações tenha sido feita no modelo de governo representativo (visando justamente aproximar a "representação" de "democracia") sua espinha dorsal - as eleições - continua intacta, o que tem duas consequências nos dias atuais: uma crise de representação e de falta de confiança na democracia, em nível mundial; e - o tema da nossa discussão - a formação de uma classe política profissional, que só precisa se preocupar com o povo em tempo de eleições, e que, por serem consideradas "autoridades em nome do povo" que substituíram as "autoridades em nome de Deus" que eram os reis, acabaram acumulando vantagens e privilégios típicos da uma nobreza.
Mas na Suécia, não. Lá os políticos se consideram povo e o povo considera os políticos como povo, não trazendo, a atividade política, nenhum status de autoridade ou nobreza, e, evidentemente, nenhuma vantagem material. Mas será que os representantes do povo sueco tem o mesmo status social dos seus representados porque lhes faltam vantagens materiais, ou será que a falta de status os impediu que acumular privilégios?
Evitando uma infrutífera discussão entre uma abordagem materialista e outra de viés mais culturalista, vamos nos limitar a entender que existem "afinidades eletivas" entre a ética igualitária dos antigos nórdicos e a institucionalização de um governo representativo (adaptada à sua cultura) no qual a classe política goza dos mesmos direitos que os seus eleitores - nem mais, nem menos.

Para concluir, devemos retornar à questão inicial: a ausência de uma distinção de classe, e de vantagens materiais, que sejam exclusivas da classe politica, leva uma dada sociedade a ser mais bem sucedida dos pontos de vista econômico e social? Se ficarmos apenas no nível do "estudo de caso" da Suécia, me atrevo a dizer que sim. Uma vez que os políticos suecos não têm capacidade jurídica de enriquecer às custas do Estado, e como não gozam de privilégios materiais pelo mero exercício de sua atividade, a única maneira de melhorar sua vida é melhorando a vida de todos.
A existência de muitos privilégios (que costuma ser justificada como forma de "atrair os melhores cérebros"), além de eliminar o incentivo à  atuação política responsável que descrevi acima (por que os melhores cérebros fariam algo por nós?) tem uma consequência adicional, bem mais sinistra: se a política oferece muito àqueles que dela desejem se ocupar, despertará o interesse não daqueles que têm paixão (e talento) para a política, mas daqueles que têm paixão pelas vantagens oferecidas. Enfim, mercantilizar a competência só serve para criar uma meritocracia da ganância, e não raro da bandidagem.

Finalmente, restou amarrar uma ponta que eu deixei solta no final da primeira parte dessa postagem: serão os suecos (e os noruegueses, finlandeses, islandeses e dinamarqueses) privilegiados pela herança cultural que receberam, enquanto nós, pobres latinos, fizemos um casamento maldito entre o patrimonialismo ibérico e a exaltação da "nobreza eleitoral", criando políticos que parecem mais com Nabucodonosor que com seus eleitores?
Não acredito que precisemos ter DNA escandinavo para mudarmos o rumo da nossa política. Basta vontade e pressão, coordenadas. Mas para quem procura por um incentivo... Pierre Clastres, em seu "A Sociedade Contra o Estado" (que eu resenhei um tempo atrás, neste link) ao estudar o papel da chefia entre as tribos indígenas do Brasil, observou que o chefe nada mais era que um mediador de conflitos sobre o qual, além disso, pesava a responsabilidade de garantir o bem-estar de todos os membros da tribo, a despeito do seu próprio.
Pronto, já temos nossos vikings. 

A Mercantilização da Competência e a Consequente Meritocracia da Bandidagem - Primeira Parte

Acabei de ler o livro "Um País Sem Excelências e Mordomias", da jornalista Cláudia Wallin (Geração Editorial, 2014), expansão de uma série de reportagens que a autora fez para o Jornal da Band, em 2010, sobre a "classe" política da Suécia. "Classe", no caso do país nórdico, tem de ser entre aspas mesmo: o primeiro-ministro lava sua própria louça e vai de trem para o trabalho (não existem carros oficiais exclusivos); apartamentos funcionais para deputados tem 19 metros quadrados (e aluguéis são cobrados caso ele permita que um familiar more lá com ele) e pagam material de escritório do próprio bolso, com um salário que é algo em torno de 50% superior ao de um professor primário; vereadores não recebem salário, apenas um ressarcimento pelos descontos que os eventuais empregadores fizerem por sua ausência no trabalho por conta da atividade política; e todos eles são tratados como "você" (sem doutores nem excelências).
Considerando o já conhecido e notório nível socioeconômico da país - a Suécia é uma das economias mais avançadas do mundo, além de contar com um amplo, generoso e bem-sucedido sistema de Welfare State, que até os anos 70 se dava ao luxo de pagar férias remuneradas para donas de casa - fiquei curioso de investigar de que maneira a incomum ausência de privilégios para políticos se relaciona com os resultados econômicos e sociais do país.
Por causa da duração provavelmente entediante do raciocínio que pretendo desenvolver aqui, vou dividi-lo em duas postagens, a parte final sendo publicada daqui uns poucos dias.
Meu ponto de partida não poderá ser outro senão a minha inspiração para a pergunta, isso é, o livro do Wallin. Não, isto não é uma resenha. Uma mini resenha, vá lá. Mas o livro tem uma riqueza de detalhes e informações tão interessante que qualquer resumo dele é incapaz de captar. Em suma, vale a leitura completa, e o que apresento nos próximos parágrafos é só uma contextualização para apresentar minhas próprias ideias.
Excluindo prefácio, introdução, apresentação, bem como um capítulo final sobre o Brasil que não foi escrito por ela, a autora divide seu trabalho sobre a política sueca em quatro capítulos.
No primeiro, apresenta o já mencionado tratamento espartano a que tem direito os políticos do país. A não deferência do tratamento tem a ver, segundo ela e aqueles a quem ela entrevistou, com a ideia de que os representantes devem viver nas mesmas condições que os representados, caso contrário, não governariam em prol destes.
No segundo capítulo conhecemos o modelo de transparência política da Suécia - o mais antigo do mundo, cuja lei já tem mais de 200 anos. O grande aparato institucional que o sustenta pode ser simplificado num exemplo simples: qualquer cidadão, sem necessidade de se identificar, pode ter acesso aos emails de qualquer agente público (incluindo os da polícia secreta!) bem como as notas fiscais originais dos gastos por eles efetuados.
O terceiro capítulo trata de como os suecos lidam com a corrupção, e e eles lidam com a corrupção de uma maneira que beira a paranoia. Os inventores do ombudsman (tanto da palavra quanto do cargo) têm um sistema que envolve agências estatais, veículos de comunicação e cidadãos comuns com bom nível educacional (os melhores índices de UE), todos imbuídos de um espírito que considera a corrupção não apenas errada, mas uma ameaça à democracia e às políticas sociais do Estado.
Finalmente, no quarto capítulo Wallin faz um breve relato histórico da transformação de uma Suécia agrária, faminta e atrasada até a metade do século XIX, num dos países industriais mais avançados do mundo e com os melhores indicadores sociais do planeta, através de uma revolução institucional que aboliu os privilégios dos ocupantes do poder, transformou a monarquia em objeto decorativo e universalizou e educação. O impulso cultural dessa transformações, afirma a autora e os cientistas políticos entrevistados para o livro, tem suas raízes na tradição igualitária dos vikings, pioneiros da democracia participativa com seus ting.
Agora, voltando à nossa questão. É evidente que o desenvolvimento econômico da Suécia deveu-se à uma mão-de-obra capacitada pela educação universal. Também é evidente que, sendo a educação universal, a industrialização não gera desigualdade de renda entre capacitados e não capacitados. E é igualmente evidente que um povo instruído, e com níveis semelhantes de vida material, tem tanto a capacidade de negociar melhor os termos da relação capital/trabalho, porque tem interesses em comum, bem como de exigir que seus governantes trabalhem para atender esses interesses e não pensem só em si mesmos.
Mas a pergunta que fica é: porque a elite sueca, lá nos século XIX, permitiu que isso acontecesse? Seriam os nobres corruptos e os parasitas da coisa pública da Escandinávia mais incompetentes em manter o status quo do que, por exemplo, seus similares brasileiros?
A resposta natural é a de que a cultura de igualdade dos vikings, reprimida naquele momento da história da Suécia (o do Império, entre os séculos XVI e XVIII), aproveitou alguma instabilidade institucional persistente para ressurgir e reorganizar as relações de poder. E a resposta deve ser essa mesma: o século XIX foi turbulento para os monarcas suecos, que tiveram de lidar com Napoleão, com a Rússia e com um ex-território seu, a Finlândia.
Visto dessa maneira, o projeto de um sistema político com pouca corrupção e muito senso dever ganha ares de utopia para aqueles países que nunca foram habitados por vikings, e de  puro delírio para os que - como nós - herdaram uma ordem social baseada nas distinções e privilégios de classe e raça que os impérios coloniais ibéricos tão bem souberam espalhar pelo mundo. Mas não é e não precisa ser assim.
Mas isso eu conto em detalhes no próximo post.

sábado, 23 de maio de 2015

O Pecado da Esquerda

Da análise da minha estante de livros (ou, mais recentemente, do meu Kindle) aos testes que proliferam pela internet - do site da Veja ao Political Compass - fica razoavelmente claro que meu posicionamento ideológico situa-se, definitivamente, à esquerda do centro no espectro político. Uma avaliação mais detalhada das minhas opiniões (por que alguém perderia tempo com isso?) ou simplesmente o ponto de vista de quem me ouve ou lê com certeza evidenciará inconsistências e espaços vazios que podem me jogar um pouco mais para lá ou um pouco mais para cá, mas, a despeito de todos esses eventuais desacertos, gosto de me considerar uma pessoa alinhada com pensamento de esquerda.
Não obstante, sou fascinado pelo pensamento de direita (e, mais especificamente, pelo pensamento conservador). As razões do meu interesse num modelo que considero ética, política e cognitivamente equivocado se fundamentam numa visão de mundo estritamente pessoal, a qual não vale a pena explicitar agora, muita embora eu pretenda fazer isso em breve. Por ora, justifico estar no momento lendo "O Jardim das Aflições", do Olavo de Carvalho (que resenharei em junho, prometo) me arrogando o direito de me comparar à Raymond Aron, antimarxista convicto que passou mais de trinta anos estudando Marx.
Toda essa enrolação foi só para informar que eu não tenho o hábito de falar da esquerda - nem bem, nem mal, primeiro por talvez  não modestamente achar que eu tenho mais prática em falar da direita, e segundo por acreditar que já tem muita gente boa, de esquerda, pensando a própria esquerda.
Mas aí a coluna da cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, publicada na revista Carta Capital dessa semana, me obriga a entrar na onda da "autocrítica".
A autora discorre  sobre o esfacelamento do PT, tanto ideológico quanto no da prática política, principalmente nesse início de segundo governo Dilma Rousseff. Desmoralizado pelos inúmeros casos de corrupção, forçado ao "politics as usual" com o PMDB em nome da governabilidade, renegando suas bandeiras trabalhistas históricas para sobreviver à crise econômica, o governo do Partido dos Trabalhadores, afirma Pinheiro-Machado, tornou-se "indefensável" pela esquerda.
A raíz da atual situação, na opinião dela, estaria no esvaziamento ideológico do PT, o abandono de um projeto baseado no empoderamento político (exemplificado pelo orçamento participativo) e sua substituição pelo empoderamento econômico (os programas sociais que colocaram milhões de brasileiros no mapa do consumo) promovido pelo lulismo. Esse aumento do poder aquisitivo, sem o correspondente (e necessário) aumento da consciência política, teria conduzido a "nova classe média" para as perigosas garras da ética egoísta neoliberal, além de manter intactos seus preconceitos raciais, de gênero e de orientação sexual - ou seja, engrossando as fileiras de um grupo que hoje flerta com a extrema direita e bate panelas em frente à TV.
Que, de fato, o principal partido de esquerda  brasileiro perdeu seu rumo (até seu presidente sabe, e fala em "refundação"),  nada mais correto; que a esquerda está, por conta disso e da sua atual fragmentação, órfã, nada mais correto; que a extrema direita, com seu tradicional discurso confuso e emocional, ganhou terreno, nada mais correto; que a causa disso tudo foi a opção por distribuir direitos econômicos em detrimento de direitos políticos, nada mais errado. E eu me atrevo a tentar dizer porquê, além de arriscar uma explicação alternativa.
Primeiro, porque a derrota da esquerda e a ascenção da extrema-direita não ocorreu só no Brasil. Esse fenômeno parece ter relação com os reflexos da crise econômica de 2008, e da consequente incapacidade financeira dos governos de sustentar políticas de welfare-state. Onde a esquerda venceu (como na Grécia) a exceção explica a regra, pois os gregos sofriam nas mãos do FMI. Ao fim e ao cabo, a simples mas poderosa teoria do voto econômico: se está ruim para pagar minhas contas, voto na oposição - seja ela qual for. Então, para o bem ou para mal da ideologia, a maneira mais eficiente de impor sua agenda numa democracia representativa é tornar a vida dos seus eleitores mais confortável, que foi exatamente o que o PT "cor-de-rosa" do governo Lula fez.
Segundo, por estarmos sujeitos a um sistema político representativo, o empoderamento dos cidadãos é limitado, restrito à problemas cotidianos que sequer arranham as questões centrais da vida política de uma sociedade. A atual crise da democracia representativa (outro problema que também não é só brasileiro) pode, no futuro, pressionar por ações que ajudem a superar essa limitação. Mas, por enquanto, empoderar não garante a sobrevivência política, e muito menos qualquer projeto emancipador, como veremos no próximo parágrafo.
E o mais importante, porque é tão absurdamente óbvio que me espanta ela não ter percebido: empoderamento político não torna ninguém mais tolerante. O fato de poder participar do processo decisório a respeito de questões que lhe dizem respeito ampliam, sem sombra de dúvida, seu capital social e sua autonomia, colocando um pouco de republicanismo na nossa combalida vivência em sociedade. Mas é muita pretensão acreditar que se possa, através desse expediente, ressocializar milhões de adultos achando que o brasileiro médio vai, em poucos anos, deixar de ser racista, machista, homofóbico e potencialmente corruptível. Uma mudança cultural de tal natureza, se não se quer concordar com o delírio conspiratório de alguns lunáticos da internet, passa por um longo processo de educação, cujo resultado só poderá ser percebido, creio eu, no decorrer de algumas gerações.
Assim, a meu ver, a "falência do PT", como diz a colunista,  não pode ser entendida sem levar em consideração as conjunturas econômica e política pós-crise de 2008, e ignorando que a cultura política no Brasil é conservadora (e que cultura não muda tão facilmente), naturalmente refratária a projetos políticos progressistas, retirando seu apoio mais facilmente do que faria em outros casos (o que talvez explique a diferença de indignação em casos de corrupção de um partido para outro). Na conta do PT, pode-se colocar a responsabilidade de - tal qual a autora - tanto não ter percebido que a totalidade do  processo não estava sob seu controle, quanto ter superestimado sua capacidade de manter-se ética e ideologicamente inabalável no papel de governo quanto o era no papel de oposição. Mas se o pecado da direita é a mediocridade, o da esquerda é a arrogância.
Então, como perguntou Lênin, que fazer? Não sei. Mas imagino que se voltar à utopia, como pede Pinheiro-Machado, é imperativo (afinal, somos a Esquerda!), não podemos incorrer no erro de achar que a utopia basta a si própria e nossa jornada será uma sucessão de triunfos.
A história só está a favor de quem está disposto a conhecê-la.

terça-feira, 28 de abril de 2015

O Exame de Próstata e o Estado Mínimo

Hoje, beirando os 40 anos, fiz minha primeira visita ao urologista, iniciando uma rotina que deverá se repetir, calculo que anualmente, até o fim de meus dias - que espero sinceramente ainda estar muito longe.
Não obstante a primeira parte do título do post, o médico apenas solicitou alguns exames, bem como fez e respondeu perguntas que, imagino, sejam de praxe.
Mas também tivemos tempo para trocar um ou dois comentários sobre política e economia e ele, depois de lamentar que "esse governo destruiu e país e está roubando tudo o que é nosso" (nisso me toquei que o carro estacionado na frente do consultório ostentando um grande adesivo "Fora Dilma, e leve o PT junto com você" deveria ser o dele) fez uma afirmação que, aí sim, tem a ver com a segunda parte do título: "O Estado, quanto menos, melhor".
Como estávamos ali para discutir assuntos de outra natureza, e evidentemente nenhum dos dois ia convencer o outro de qualquer coisa, dei de ombros, peguei meus pedidos de exame e fui embora.

Mas a frase "Estado, quanto menos, melhor" ficou na minha cabeça. Porque, nos últimos anos, muito mais gente além do meu urologista (e gente de nível socioeconômico e educacional tão alto quanto o do meu urologista) tem reafirmado com força sua crença nas virtudes do Estado Mínimo e as maldades que um governo com mais poder sobre a ordem social e econômica podem perpetrar. Mas de onde vem essa ideia de que menos governo é melhor para todo mundo, e mais governo só é melhor para quem governa? Foi comprovada, em algum lugar, por alguém?

A primeira defesa do livre mercado frente à intervenção estatal é, sabidamente, a metáfora da mão invisível de Adam Smith em A Riqueza das Nações. Embora seja considerado o pai da Economia, é preciso ter em mente as pretensões de Smith como filósofo moral, de modo que seu raciocíno acerca do benefício mútuo das ações individuais egoístas pode ser entendido não só como uma abstração do funcionamento do capitalismo (que ademais ainda estava em seus primórdios) mas antes como uma defesa da liberdade do indivíduo comum (que formavam a burguesia comercial, à época) contra as amarras impostas pelo nobres do Antigo Regime (a aristocracia que era, então, sinônimo de governo). Assim, a "mão invisível" do mercado, neste momento, era um conceito filosófico que traduzia a confiança do seu criador na capacidade humana de se autogovernar, sem ter de recorrer - e se curvar - diante de gente que supostamente seria de um estamento superior, e que era, repito, o governo então existente.
E o conceito permaneceu assim, mais filosófico que econômico, por quase todo o século XIX, até que, literalmente, um espectro rondou a Europa - o espectro do comunismo.
No campo teórico, Marx e seus seguidores criaram uma ciência do devir histórico e preveram o fim do capitalismo, como base numa análise diacrônica do surgimento, evolução e declínio dos modos de produção. Os tubarões (nesse tempo, da indústria) tinham diante de si um edifício teórico que além de expor sua condição inevitavelmente insustentável, dava combustível ideológico para as revoltas proletárias, e justificando (para estes tubarões) a estatização dos meios de produção - o que viria acontecer na URSS, a partir de 1917. Era preciso fazer alguma coisa.
Ora, já que a crítica ao capitalismo se apropriou da História para construir seu argumento, a defesa do capital foi buscar socorro em outra disciplina da educacão básica: a Matemática (e a Física).
A formalização da Ciência Econômica ainda era incipiente no início do século XX, mas como os comunistas já tinham uma teoria bem montada para fundamentar seu ponto de vista, um esforço concentrado com o objetivo de fornecer à economia burguesa uma base equivalente foi realizado: apropriou-se da mão invisível filosófica de Adam Smith e tentou-se provar, matematicamente, a sua  existência. Não foi um trabalho simples, e quase oito décadas se passaram entre a primeira tentativa (Walras) e o modelo mais bem acabado (Arrow-Debreu). Felizmente, a tempo de participar da Guerra Fria e resmungar contra o viés centralizador do keynesianismo. Quando este se esgotou e aquela foi vencida pelo Ocidente, o mundo se abriu para a crença neoliberal, e seu equilíbrio geral de origem microeconômica, no qual o governo só entra para atrapalhar.

Prestemos atenção na metamorfose dos usos de um conceito através do tempo: a mão invisível, uma defesa do direito moral da liberdade individual contra a estrutura social rígida imposta pelos governamentes do Antigo Regime; dali, para a "Teoria Geral do Equilíbrio" um modelo matemático mais afim com  Matemática Pura e com a Física Teórica que com a realidade dos mercados, desenvolvido para justificar o combate à natureza anti-propriedade privada (logo, estatizante) do comunismo; mais adiante, como a única forma "verdadeira" de se conduzir a economia (e, forçosamente, a política) tendo em vista o "fim das ideologias", como disse Fukuyama. Forma essa marcada pelas privatizações, pela flexibilização das relações de trabalho, e pelo enxugamento dos gastos públicos. Daí, para a boca do meu urologista: "Estado, quanto menos, melhor".

É definitivamente a história de um triunfo, mas não um triunfo de um conhecimento científicamente comprovado de qual deve ser o papel do Estado na economia, sobre todas as ideologias e engenharias sociais. É o triunfo de uma ideologia sobre outras ideologias, pois foi uma luta que não ocorreu num campo de batalha empírico (qual foi ou é o país 100% liberal/libertário?) mas num plano teórico em que - veja bem, caixa alta: a IDEIA vencedora se aproveitou de uma realidade que  pouco ajudou a construir, para explicar a ela e justificar a si, num movimento a posteriori.

Quando, então, alguém perto de mim brada por menos Estado, consigo ouvir o pedido por um mundo de oportunidades idênticas e sem distinções de berço, como queria Adam Smith. Acontece que, desde que se cortaram algumas cabeças coroadas lá no final do século XVIII, o Estado deixou de ser propriedade dos governantes e passou a ser instrumento, e poucas foram as reais melhorias na vida das pessoas que não foram realizadas por intermédio dele. Se A Riqueza das Nações (o tratado moral, já que a economia se tornou ilegível para não economistas nos dias atuais) fosse escrito hoje, creio eu, seu autor pediria um Estado melhor, e não menor.