Dias atrás, postei um vídeo aqui, de um discurso da cientista política guatemalteca Glória Alvarez (que semana passada estava no Brasil, tendo inclusive subido no trio elétrico do protesto antigoverno em São Paulo), sobre os males do populismo na América Latina e de como a tecnologia poderia ser utilizada para superá-lo. Elogiei a coerência e a fundamentação de seus argumentos, ressalvando que não concordava com o conteúdo, mas com a forma bem feita com que foram apresentados, se comparado com seus pares nacionais. Também apontei uma possível incongruência no seu raciocínio e prometi (a mim mesmo) pensar melhor sobre o assunto, voltando ao tema quando chegasse a alguma conclusão.
Pois bem. Revendo seu discurso com calma, se seria exagero afirmar que estou decepcionado com Alvarez, devo dizer que parte do encanto se foi. Ela repete, não raro, a mesma ladainha libertária, floreada com ideais republicanos que resultam numa mistura marcada por aquela incongruência que me incomodava mas que ainda não tinha atinado perfeitamente.
Para confirmar minha impressão, procurei algum artigo dela com perfil mais acadêmico - não por elitismo intelectual boboca que considere o "reconhecimento da comunidade científica" como essencial, mas num esforço de tentar encontrar, num texto que teoricamente é elaborado com objetivo menos político (se é que isso é possível, ou mesmo desejável) uma explicação mais organizada das ideias que seu discurso apresenta. Não tendo sucesso, sou obrigado a me ater ao já citado vídeo (que ademais foi a que a tornou famosa no Brasil) bem como outras entrevistas e aparições na mídia.
A meu ver, a proposta política de Glória Alvarez - "desmantelar o populismo através da tecnologia" - peca em suas premissas teóricas, na maneira como essas premissas são articuladas e, o mais grave, em suas propostas práticas.
Nas premissas, ela erra tanto na definição de "populismo" quanto na de "republicanismo".
Erra no primeiro porque recorta o populismo que lhe convém - aquele, segundo ela, surgido depois de queda do Muro de Berlim como uma tábua de salvação dos comunistas então órfãos da URSS e que viria, na América Latina de vinte anos depois, autointitular-se bolivarianismo. Deixa de lado uma longa tradição populista no subcontinente, que remonta ao Getulismo e ao Peronismo, bem como perde a oportunidade de se perguntar se ele ocorre ou não em outros lugares do mundo. Muito embora ela tenha consciência e deixe claro que o populismo ocorre tanto em governos de direita quanto de esquerda (o que a faz questionar a validade dessa separação, na AL dos dias atuais) o significado que Alvarez dá ao termo populismo, no entanto, acaba enviesado pela herança socialista que ela lhe dá - e isso fará toda a diferença em suas conclusões.
E erra no segundo porque define República da forma que, verdade seja dita, só existe na cabeça dela. De uma confusa mistura entre direitos naturais e o governo misto de Aristóteles e Políbio, chega a uma República que se estrutura numa ordem institucional para a defesa dos direitos individuais (à vida, à liberdade e à propriedade) e nada mais, ignorando alguns dos aspectos mais importantes do republicanismo contemporâneo: o engajamento cívico, o sentido do bem comum, a responsabilidade coletiva, entre outros. Assim, da mesma forma que colou o populismo ao socialismo (e à esquerda em geral) cola a República ao Liberalismo (que é na AL uma das vertentes da direita), de modo que aquele torna-se defesa deste quando deveria ser sua alternativa.
Pois bem. Revendo seu discurso com calma, se seria exagero afirmar que estou decepcionado com Alvarez, devo dizer que parte do encanto se foi. Ela repete, não raro, a mesma ladainha libertária, floreada com ideais republicanos que resultam numa mistura marcada por aquela incongruência que me incomodava mas que ainda não tinha atinado perfeitamente.
Para confirmar minha impressão, procurei algum artigo dela com perfil mais acadêmico - não por elitismo intelectual boboca que considere o "reconhecimento da comunidade científica" como essencial, mas num esforço de tentar encontrar, num texto que teoricamente é elaborado com objetivo menos político (se é que isso é possível, ou mesmo desejável) uma explicação mais organizada das ideias que seu discurso apresenta. Não tendo sucesso, sou obrigado a me ater ao já citado vídeo (que ademais foi a que a tornou famosa no Brasil) bem como outras entrevistas e aparições na mídia.
A meu ver, a proposta política de Glória Alvarez - "desmantelar o populismo através da tecnologia" - peca em suas premissas teóricas, na maneira como essas premissas são articuladas e, o mais grave, em suas propostas práticas.
Nas premissas, ela erra tanto na definição de "populismo" quanto na de "republicanismo".
Erra no primeiro porque recorta o populismo que lhe convém - aquele, segundo ela, surgido depois de queda do Muro de Berlim como uma tábua de salvação dos comunistas então órfãos da URSS e que viria, na América Latina de vinte anos depois, autointitular-se bolivarianismo. Deixa de lado uma longa tradição populista no subcontinente, que remonta ao Getulismo e ao Peronismo, bem como perde a oportunidade de se perguntar se ele ocorre ou não em outros lugares do mundo. Muito embora ela tenha consciência e deixe claro que o populismo ocorre tanto em governos de direita quanto de esquerda (o que a faz questionar a validade dessa separação, na AL dos dias atuais) o significado que Alvarez dá ao termo populismo, no entanto, acaba enviesado pela herança socialista que ela lhe dá - e isso fará toda a diferença em suas conclusões.
E erra no segundo porque define República da forma que, verdade seja dita, só existe na cabeça dela. De uma confusa mistura entre direitos naturais e o governo misto de Aristóteles e Políbio, chega a uma República que se estrutura numa ordem institucional para a defesa dos direitos individuais (à vida, à liberdade e à propriedade) e nada mais, ignorando alguns dos aspectos mais importantes do republicanismo contemporâneo: o engajamento cívico, o sentido do bem comum, a responsabilidade coletiva, entre outros. Assim, da mesma forma que colou o populismo ao socialismo (e à esquerda em geral) cola a República ao Liberalismo (que é na AL uma das vertentes da direita), de modo que aquele torna-se defesa deste quando deveria ser sua alternativa.
Da definição equivocada dos termos só poderia decorrer, quando da interação entre eles, um equívoco ainda maior. Alvarez propõe que a República (a sua República, fundamentada no liberalismo) possa superar os males causadores do e causados pelo Populismo (que para ela é roupa nova do imperador comunista). Dessa forma, aglutina todo e qualquer projeto político que envolva distribuição de renda como populista e perpetuador dos ciclos de pobreza, ciclos esses só passíveis de serem rompidos pela educação republicana, que, nesse caso, tem a ver com o apoio irrestrito à instituições que, como se sabe, em geral atuam como mecanismos de manutenção do status quo, ainda mais em sociedades pautadas pelo interesse individual - que é o que ela prega.
E então fica fácil explicar como um discurso repleto de referências eruditas descamba no habitual preconceito de senso comum: a de que a miséria econômica dos pobres latinoamericanos, aliada à sua miséria intelectual (a falta de educação) levaria essas pessoas a incapacidade de compreender tanto as causas de sua desgraça quanto os meios para se livrar dela, caindo, por ignorância e fome, nas garras dos "protetores" que a política populista fornece. Ora, a questão é mais complicada que isso: o eleitor de classe média, mais letrado e nutrido, vota contra seus interesses em favor de "ideais republicanos"? A elite das elites do capitalismo atual, os banqueiros, canalizam seu apoio para projetos políticos unicamente por ideologia, sem sequer pensar nos seus lucros? Por que só o autointeresse imediatista dos pobres é falta de educação? Por que só dos pobres exige-se que se sofra (ainda mais) no presente para ter, quem sabe, algum lucro no futuro? Dois séculos de democracia representativa retiraram o debate racional do processo político (se é que um dia ele foi dominante) e o substituíram pelas paixões insufladas pelos marqueteiros, e esse fenômeno ocorreu de alto a baixo da pirâmide social.
Por isso, o projeto político de Alvarez, em que uma "primavera latinoamericana" surge da insurreição de um povo politizado pelo Facebook contra seus déspotas benevolentes, é falho. Do começo ao fim. E é falho não por ela desconhecer a real natureza do problema: em determinado momento de seu discurso, ela afirma, com grande lucidez, que o acesso satisfatório a direitos como saúde e educação dependem de "uma renúncia prévia dos direitos de propriedade de alguém" para serem garantidos. Seu principal erro está em não reconhecer os pobres como debatedores tão racionais e conscientes de seus interesses como qualquer outro estrato social, mas de achar que eles precisam ser educados para isso - e educar, nesse caso, não me parece nada mais do que doutrinar um exército de pobres de direita.
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