Dessa vez, o livro de um gênio prematuro prematuramente morto, Pierre Clastres.
CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado: pesquisas em antropologia política. Trad. Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
“A Sociedade Contra o Estado” trata justamente disso: da sociedade contra o estado, em que grupos humanos ditos “primitivos” agem, deliberadamente, no sentido de se manterem como sociedades sem estado.
Publicado originalmente em 1974, o livro é a reunião de dez artigos publicados pelo antropólogo francês (formado na filosofia) Pierre Clastres, no decorrer da década anterior, acrescido de um capítulo final, com o mesmo título que o volume. Sua espinha dorsal é composta pela articulação entre o primeiro capítulo – que funciona como introdução – o último, que apresenta as conclusões e teorias do autor, e os outros nove capítulos, que, através da análise da organização social, da linguagem e da filosofia política (essa tripartição é feita por Tânia Stolze Lima e Marcio Goldman, no prefácio que escreveram para a edição brasileira da obra) dos índios da América do Sul (onde Clastres fizera seus trabalhos de campo), ajudam a construir a tese apresentada nos capítulos inicial e final.
Em “Copérnico e os Selvagens”, dialogando com o filósofo Jean-William Lapierre, Clastres questiona a noção comum na antropologia de que a divisão entre as sociedades “sem estado” e “com estado” existe numa gradação, sendo as primeiras mais arcaicas que as segundas. Para o autor, essa visão decorre de que nossa conceituação de poder está por demais vinculada à nossa ideia de estado como detentor dos meios de coerção – assim, ao tratarmos das sociedades primitivas, estaríamos falando antes de coerção do que de poder político propriamente. Como considera o “poder político como universal, imanente ao social” (p. 37), Clastres divide os poder político em coercitivo, caso da nossa sociedade, e não-coercitivo, caso das sociedades indígenas que nosso etnocentrismo não deixar perceber. Nesse mesmo artigo o autor expõe sua proposta por uma “antropologia geral da política” baseado nessa universalidade do poder político inerente ao social e consequentemente na sua precedência sobre o o fator econômico na determinação da estrutura social, o que o posiciona seu pensamento inversamente à ideologia marxista.
Os quatro capítulos posteriores tem como tema central a organização social dos índios da América do Sul, com exceção das que ele chama da sociedades elevadas – os Incas, que serão mencionados quase sempre à título de comparação, tanto aqui quanto no resto do livro.
“Troca e Poder: filosofia da chefia indígena” apresenta os elementos constitutivos da noção de chefe entre os índios: ele é, basicamente, alguém a quem é delegada a obrigação de apaziguar as disputas internas, a quem é obrigado a generosidade para com os demais membros do grupo, e alguém que deve ter o dom da palavra e a capacidade de contar histórias, em troca do direito de, na quase na totalidade das sociedades levadas em consideração por Clastres, ter mais de uma esposa. O chefe indígena é, enfim, alguém sem autoridade real, salvo em situações de guerra. No capítulo seguinte, “Independência e Exogamia” o autor refuta a noção de sociedade fragmentada em pequenos grupos, dos índios, ao discorrer sobre as regras exogâmicas dos mesmos. Nos mesmo sentido, “Elementos de demografia ameríndia” avalia os trabalhos dos viajantes do período colonial dos demógrafos posteriores com o intuito de fixar a verdadeira dimensão da população indígena à época dos descobrimentos – o tamanho das sociedades é importante para as ideias de Clastres. O último capítulo com temática majoritariamente voltada para a organização social, com uma escrita mais elaborada, próximo ao literário, é “O arco e o Cesto”, que fala das divisões encontradas dentro da sociedade Guayaki, foco do trabalho de campo Clastres. As formas de divisão social apresentadas deixam claro o caráter político delas – dentro da concepção de poder político do autor, obviamente.
Os capítulos “De que riem os Índios?” e “O Dever da Palavra” e “Profetas na Selva” tratam de como a linguagem se relaciona com o poder na sociedades primitivas. O primeiro, o papel educador das narrativas humorísticas; o segundo, desenvolvendo melhor a já citada obrigatoriedade do chefe indígena em ter retórica desenvolvida; e por fim, o terceiro fala do papel dos karai, os profetas tupi-guarani, nos grupos remanescentes dessa nação no Chaco paraguaio.
A questões de filosofia politica presentes no livro falam da cosmovisão dos índios e de seu processo de socialização. Em “Do Um sem o Múltiplo”, Clastres relaciona essa cosmovisão com o repúdio da unidade, do “Um”, da totalidade que é má em comparação com a multiplicidade, porque esta última consegue compreender, sem anular, a dualidade homens-deuses. “Da Tortura nas Sociedades Primitivas” o autor faz a ligação entre os dolorosos ritos de iniciação dessas sociedades e a a utilidade dessa dor como advertência ao desejo de poder.
Como já dissemos, Clastres sintetiza as ideias desenvolvidas no decorrer dos artigos anteriores no último capítulo, “A Sociedade contra o Estado”.
Denunciando o etnocentrismo presente da divisão das sociedades em “sem estado” e “com estado”, Clastres demonstra a sobrevivência dos conceitos evolucionistas na antropologia, forçando a crença numa gradação de “desenvolvimento” da sociedades no qual a Ocidental seria, com seu Estado e seu mercado, o ápice. Para ele, a técnica de uma sociedade tem o objetivo de adaptação às necessidades, e, dessa forma, todas as que existem, por ter tecnologia para tal, estão num mesmo patamar.
Estendendo essa crítica ao etnocentrismo subliminar da antropologia de seu tempo (não sabemos se é possível classificar suas ideias dentro do relativismo cultural stricto sensu, embora esteja claro, em várias passagens, de que lado se posiciona) aos hábitos e à economia dos índios, o autor aponta a impossibilidade de se compreender o processo de formação do trabalho alienado, das classes sociais e da coerção estatal pela perspectiva econômica, à maneira de Marx. Ao colocar o poder político como antecessor e determinante das relações econômicas e não o contrário, Clastres consegue, na nossa opinião, justificar a necessidade da constituição, como ciência, da sua antropologia geral da política.
Dentro desse contexto do poder político como infraestrutura é que Clastres fará sua observação mais interessante e preparará terreno para sua radical visão sobre as sociedades primitivas. Para o autor, é a natureza concentradora de poder do estado que gera as divisões hierárquicas dentro do seio de uma sociedade. No entanto, esse processo de concentração só pode surgir onde ele for, decididamente, inevitável. E, segundo Clastres, o que torna a concentração de poder inevitável é a expansão demográfica, que possivelmente provoca o surgimento de problemas e situações que não existiam antes, quando os grupos eram menores, forçando a transformação do chefe “à serviço da comunidade” para o chefe com real poder político.
E é nesse processo de formação do poder concentrador – o Um – que reside a observação mais importante do livro e talvez a mais original do pensamento de Clastres. Ele afirma que, quando os indivíduos de uma sociedade sem estado (em que o poder político está disperso em todas as pessoas, sendo o chefe apenas uma figura representativa do grupo social e, no máximo, um comandante para os tempos de guerra) percebem uma alteração social que possa desembocar numa maior concentração de poder político em alguém, ou seja, quando percebem a possibilidade da formação de um estado, eles podem se rebelar. Seja através de messianismo dos profetas karai, seja através do infanticídio e outras formas de controle populacional, seja através da dissolução em grupos menores, Clastres vê as sociedades sem estado deliberadamente lutando contra o seu surgimento.
“A Sociedade contra o Estado” é uma inspiradora combinação de etnologia, filosofia política e epistemologia, resultado de um período histórico no qual a intelectualidade sonhava em libertar a humanidade dos grilhões em que ela própria havia se acorrentado. O tempero claramente anarquista e antimarxista dos escritos de Clastres são a prova dessa intenção, e as eventuais fraquezas do trabalho devem ser creditadas mais à dificuldade na obtenção de dados sobre as comunidades indígenas e ao trabalho de se iniciar um novo – e extremamente abrangente – campo de pesquisa, que ao posicionamento ideológico que alguns poderiam considerar ultrapassado, datando-o prematura e injustificadamente.
Perfeito!
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