sábado, 23 de maio de 2015

O Pecado da Esquerda

Da análise da minha estante de livros (ou, mais recentemente, do meu Kindle) aos testes que proliferam pela internet - do site da Veja ao Political Compass - fica razoavelmente claro que meu posicionamento ideológico situa-se, definitivamente, à esquerda do centro no espectro político. Uma avaliação mais detalhada das minhas opiniões (por que alguém perderia tempo com isso?) ou simplesmente o ponto de vista de quem me ouve ou lê com certeza evidenciará inconsistências e espaços vazios que podem me jogar um pouco mais para lá ou um pouco mais para cá, mas, a despeito de todos esses eventuais desacertos, gosto de me considerar uma pessoa alinhada com pensamento de esquerda.
Não obstante, sou fascinado pelo pensamento de direita (e, mais especificamente, pelo pensamento conservador). As razões do meu interesse num modelo que considero ética, política e cognitivamente equivocado se fundamentam numa visão de mundo estritamente pessoal, a qual não vale a pena explicitar agora, muita embora eu pretenda fazer isso em breve. Por ora, justifico estar no momento lendo "O Jardim das Aflições", do Olavo de Carvalho (que resenharei em junho, prometo) me arrogando o direito de me comparar à Raymond Aron, antimarxista convicto que passou mais de trinta anos estudando Marx.
Toda essa enrolação foi só para informar que eu não tenho o hábito de falar da esquerda - nem bem, nem mal, primeiro por talvez  não modestamente achar que eu tenho mais prática em falar da direita, e segundo por acreditar que já tem muita gente boa, de esquerda, pensando a própria esquerda.
Mas aí a coluna da cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, publicada na revista Carta Capital dessa semana, me obriga a entrar na onda da "autocrítica".
A autora discorre  sobre o esfacelamento do PT, tanto ideológico quanto no da prática política, principalmente nesse início de segundo governo Dilma Rousseff. Desmoralizado pelos inúmeros casos de corrupção, forçado ao "politics as usual" com o PMDB em nome da governabilidade, renegando suas bandeiras trabalhistas históricas para sobreviver à crise econômica, o governo do Partido dos Trabalhadores, afirma Pinheiro-Machado, tornou-se "indefensável" pela esquerda.
A raíz da atual situação, na opinião dela, estaria no esvaziamento ideológico do PT, o abandono de um projeto baseado no empoderamento político (exemplificado pelo orçamento participativo) e sua substituição pelo empoderamento econômico (os programas sociais que colocaram milhões de brasileiros no mapa do consumo) promovido pelo lulismo. Esse aumento do poder aquisitivo, sem o correspondente (e necessário) aumento da consciência política, teria conduzido a "nova classe média" para as perigosas garras da ética egoísta neoliberal, além de manter intactos seus preconceitos raciais, de gênero e de orientação sexual - ou seja, engrossando as fileiras de um grupo que hoje flerta com a extrema direita e bate panelas em frente à TV.
Que, de fato, o principal partido de esquerda  brasileiro perdeu seu rumo (até seu presidente sabe, e fala em "refundação"),  nada mais correto; que a esquerda está, por conta disso e da sua atual fragmentação, órfã, nada mais correto; que a extrema direita, com seu tradicional discurso confuso e emocional, ganhou terreno, nada mais correto; que a causa disso tudo foi a opção por distribuir direitos econômicos em detrimento de direitos políticos, nada mais errado. E eu me atrevo a tentar dizer porquê, além de arriscar uma explicação alternativa.
Primeiro, porque a derrota da esquerda e a ascenção da extrema-direita não ocorreu só no Brasil. Esse fenômeno parece ter relação com os reflexos da crise econômica de 2008, e da consequente incapacidade financeira dos governos de sustentar políticas de welfare-state. Onde a esquerda venceu (como na Grécia) a exceção explica a regra, pois os gregos sofriam nas mãos do FMI. Ao fim e ao cabo, a simples mas poderosa teoria do voto econômico: se está ruim para pagar minhas contas, voto na oposição - seja ela qual for. Então, para o bem ou para mal da ideologia, a maneira mais eficiente de impor sua agenda numa democracia representativa é tornar a vida dos seus eleitores mais confortável, que foi exatamente o que o PT "cor-de-rosa" do governo Lula fez.
Segundo, por estarmos sujeitos a um sistema político representativo, o empoderamento dos cidadãos é limitado, restrito à problemas cotidianos que sequer arranham as questões centrais da vida política de uma sociedade. A atual crise da democracia representativa (outro problema que também não é só brasileiro) pode, no futuro, pressionar por ações que ajudem a superar essa limitação. Mas, por enquanto, empoderar não garante a sobrevivência política, e muito menos qualquer projeto emancipador, como veremos no próximo parágrafo.
E o mais importante, porque é tão absurdamente óbvio que me espanta ela não ter percebido: empoderamento político não torna ninguém mais tolerante. O fato de poder participar do processo decisório a respeito de questões que lhe dizem respeito ampliam, sem sombra de dúvida, seu capital social e sua autonomia, colocando um pouco de republicanismo na nossa combalida vivência em sociedade. Mas é muita pretensão acreditar que se possa, através desse expediente, ressocializar milhões de adultos achando que o brasileiro médio vai, em poucos anos, deixar de ser racista, machista, homofóbico e potencialmente corruptível. Uma mudança cultural de tal natureza, se não se quer concordar com o delírio conspiratório de alguns lunáticos da internet, passa por um longo processo de educação, cujo resultado só poderá ser percebido, creio eu, no decorrer de algumas gerações.
Assim, a meu ver, a "falência do PT", como diz a colunista,  não pode ser entendida sem levar em consideração as conjunturas econômica e política pós-crise de 2008, e ignorando que a cultura política no Brasil é conservadora (e que cultura não muda tão facilmente), naturalmente refratária a projetos políticos progressistas, retirando seu apoio mais facilmente do que faria em outros casos (o que talvez explique a diferença de indignação em casos de corrupção de um partido para outro). Na conta do PT, pode-se colocar a responsabilidade de - tal qual a autora - tanto não ter percebido que a totalidade do  processo não estava sob seu controle, quanto ter superestimado sua capacidade de manter-se ética e ideologicamente inabalável no papel de governo quanto o era no papel de oposição. Mas se o pecado da direita é a mediocridade, o da esquerda é a arrogância.
Então, como perguntou Lênin, que fazer? Não sei. Mas imagino que se voltar à utopia, como pede Pinheiro-Machado, é imperativo (afinal, somos a Esquerda!), não podemos incorrer no erro de achar que a utopia basta a si própria e nossa jornada será uma sucessão de triunfos.
A história só está a favor de quem está disposto a conhecê-la.