segunda-feira, 12 de julho de 2010

Esse post não é uma resenha

É a transcrição de um seminário que fiz. Ok, ok, sei que isso é um artifício argumentativo com ares de desculpa esfarrada, já que tanto uma resenha quanto um seminário sobre um livro, uma vez "reduzidos à termo"  são a mesma coisa. Mas aqueles que se dedicam ao trabalho intelectual sabem das dificuldades - e do tempo necessário - para se produzir algo. Em minha defesa devo acrescentar que os trabalhos são produzidos por mim, e publico aqui apenas os que considero mais satisfatórios. A não publicação de nada criado especificamente para o blog não era o que pretendia no início, como sempre ressalto, mas é o que acabou acontecendo. Assim é a vida.
Lamentações à parte, o que trago aqui hoje é a resenha de um artigo do alemão Max Gluckman, "Rituais de Rebelião no Sudeste da África", que é um seminário feito pelo autor para uma conferência em homenagem ao inglês James Frazer.
Então, divirtam-se com a minha transcrição de um seminário sobre um artigo baseado numa conferência de homenagem. Descrevendo assim parece complicado, mas não é. Além de muito interessante.


P.S. Se a alguém interessar pular os atravessadores e buscar o texto original, algumas informações. A versão de onde retiro os trechos citados é de uma tradução de 1974, de Ítalo Moriconi Júnior,  publicada pela Editora Universidade de Brasília, como o número 4 de uma série chamada Cadernos de Antropologia. Não conheço outra edição em português.




“Rituais de Rebelião no Sudeste da África”, de Max Gluckman



“Rituais de Rebelião no Sudeste da África foi um trabalho apresentado por Gluckman como uma conferência em homenagem a Sir James Frazer. Assim, é natural que o autor desenvolva seu artigo dialogando com a obra do antropólogo evolucionista inglês, muito embora acabe por se distanciar de Frazer para apresentar os dados e as conclusões de suas próprias pesquisas.

Partindo do trecho inicial de o Ramo Dourado, em que Frazer descreve o ritual do Rei-Sacerdote do Bosque de Nemi, na Itália (para conquistar o sacerdócio, o candidato deve assassinar o atual ocupante do posto, e neste posto permanecerá até que alguém o mate e torne-se o novo sacerdote) e o relaciona com outros rituais de rebelião registrados em vários lugares e épocas, considerando-as, em síntese, como cerimônias que representavam a morte e o renascimento da vida, especialmente a vegetal, como as colheitas anuais, Gluckman apresenta os objetivos da sua conferência:

proponho a consideração da maneira pela qual seus herdeiros [de Frazer] antropológicos interpretaram rituais de rebelião semelhantes. (p.1)

Com essa proposta, Gluckman elogia mas procura se afastar do método intelectualista de Frazer, por considerá-la como produto de uma época em que os dados a disposição do pesquisador permitiam apenas a busca de padrões intelectuais em costumes espalhados no tempo e no espaço, ao contrário da Antropologia moderna, que com o trabalho de campo, levou a pesquisa antropológica ao estudo das relações internas da própria sociedade estudada. Assim, Gluckman diz que vai tratar especificamente de cerimônias realizadas por povos do sudeste da África, nos quais ele afirma existir elementos de tensão social controlada, que ele chama de rituais de rebelião.

O primeiro deles, o rito em homenagem à Deusa Nonkubulwana, única divindade plenamente desenvolvida do panteão Zulu. Nonkubulwana, é entendida apenas como parte humana, sendo também composta por outros elementos da natureza, tais como a neblina, as árvores e as montanhas. É a deusa que ensinou à humanidade todas as artes úteis da agricultura e da manufatura, sendo celebrada em comunidades agrícolas, em escala local, quando as lavouras começam a crescer. É um ritual de participação exclusiva das mulheres, com o objetivo de assegurar a prosperidade e produtividade da lavoura. Descrevendo-o, Gluckman diz:

Entre os Zulus, o mais importante desses ritos requeria o comportamento obsceno da parte das mulheres e das moças. Estas vestiam-se como homens e tratavam e tiravam o leite do gado, coisa que normalmente era tabu para elas. Ao longe, na savana, suas mães plantavam uma roça para a deusa e lhe ofereciam uma libação de cerveja. Depois, essa roça era abandonada. Em vários estágios da cerimônias, as mulheres e as moças ficavam despidas e entoavam canções lascivas. Os homens e rapazes escondiam-se e não podiam-se aproximar das mulheres. (p.5)

Gluckan menciona rituais semelhantes registrados por Frazer, destacando seu interesse pelo aspecto que nomeia como bacântico – o fato de as mulheres terem um papel dominante e os homens, subordinado, na cerimônia, sendo as sociedades em que estas ocorriam, predominantemente, patriarcais. O ritual de Nonkubulwana constitui, portanto, como conclui Gluckman:

meu primeiro exemplo de um ritual de rebelião, protesto institucionalizado exigido pela tradição sagrada, aparentemente contra a ordem estabelecida, mas que pretende abençoar tal ordem, com o fito de conseguir prosperidade. (p. 6)

Mais que serem patriarcais, em tais sociedades as mulheres dependiam completamente dos homens. Gluckman cita como exemplos disso o casamento zulu, em que as mulheres se deslocavam de sua família para uma nova (a do noivo), e todo um sistema de compensação por meio de cabeças de gado era posto em funcionamento (o gado que a família da noiva recebia pelo casamento desta era usado como compensação para o casamento de seu irmão) fazia com que as mulheres, por serem forasteiras na linhagem dos maridos, fossem mais suscetíveis à acusações de bruxaria, e também porque da estabilidade do casamento delas dependia a estabilidade do casamento do irmão, acabavam presas na estrutura familiar.

Situando as cerimônias de Nonkubulwana neste contexto social, Gluckman vai explicá-las como um ritual em que os valores típicos da sociedade são confrontados, subvertidos pelas praticantes, como, de novo em suas próprias palavras:

por um ato de rebelião, por uma demonstração aberta e privilegiada de obscenidade, pela ação evidente de conflitos fundamentais tanto na estrutura social como nas psiquês individuais. (p.11)

Voltando a dialogar com Frazer, Gluckman começa a desenvolver sua proposta teórica:

a partir do momento em que passamos a saber algo sobre os papeis sociais dos participantes da cerimônia – algo que Frazer não sabia – podemos levar nossa análise pelos caminhos não percorridos pelo roteiro intelectualista de Frazer. Para ele, esse tipo de cerimônia era uma resposta ao pensamento humano sobre o universo; com mais informação sobre o assunto, vemos que ele reflete e supera conflitos sociais bem como falta de conhecimento. (pp.11-12)

Elegantemente, Gluckman critica a análise de Frazer e propõe uma interpretação que, como diria Marx, ao invés de descer do céu à terra – a cerimônia de Nonkubulwana como tradução da cosmovisão de um povo - aqui se ascende da terra ao céu: o ritual como tradução dos conflitos sociais, e a sua superação, através do seu enquadramento dentro da ordem.

Depois de mostrar um ritual de rebelião num nível regional, no segundo exemplo Gluckman vai expandir sua tese para o nível nacional – ou seja, tratar os rituais de rebelião no contexto político.

A cerimônia descrita é o Incwala, dos Suazi, vizinhos dos Zulus. Trata-se de um cerimônia de primeiros frutos – depois da colheita, só é permitido alimentar-se dos frutos desta colheita após a realização do ritual, e mesmo assim seguindo uma hierarquia de precedência. Segundo o autor, esse é o principal conflito da cerimônia: o Rei competindo com seus súditos para fazer valer esse precedência. Deve-se destacar que, quanto mais idoso o rei, maiores são os ritos.

Gluckman usa a descrição da antropóloga Hilda Kuper. Em linhas gerais, o Incwala começa quando o rei se retira para um cercado sagrado, representando a perda de poder do homem em relação às forças cósmicas. Essa retirada deve ser feita antes solstício da primavera, em tempo hábil para que todos os rituais ocorram antes dele. Durante esse retiro, especialistas hereditários no ritual, conhecidos como “Sacerdotes do Mar”, confeccionam duas cabaças que são posteriormente enroladas com tiras de couro de um touro negro roubado exclusivamente para o ritual, de algum súdito não pertencente ao clã real. Esses sacerdotes sairão em peregrinação pelo país, recolhendo água dos rios e do mar, e também praticando saques permitidos sobre a população.

Na última lua nova que antecede o solstício, começa a pequena cerimônia, com as cabaças sendo colocadas dentro do curral do rei, e os sacerdotes pilhando a capital. Regimentos do exército, mas mulheres e crianças posicionam-se dentro deste curral e entoam canções que falam dos inimigos do rei, e do ódio que sentem por este. O rei inicia então um tratamento ritual, ao som de cânticos entoados pelo soldados que falam “do triste fardo de ser rei”, tomando remédios mágicos trazidos pelos Sacerdotes do Mar. Durante esse tratamento, o rei deve estar cercado apenas dos seus súditos leais, e que além disso com ele não tenham laços de parentesco. O Rei cospe o remédio e multidão aplaude – o rei trunfou e está fortalecendo a terra. Cantam o hino nacional, repetindo a cerimônia de cuspir no dia seguinte, encerrando a pequena cerimônia. Os guerreiros ainda limpa o roçado da rainha-mãe, mas de forma descuidada, preguiçosa e com grande perda de tempo, o que parece ser um protesto, talvez inconsciente, de crítica ao trabalho para o Estado.

A grande cerimônia desenvolve-se de forma semelhante, e, segundo Gluckman, com os mesmo temas relevantes para a sua análise. Ele próprio faz um resumo da descrição completa de Hilda Kuper.

Gluckman assim sintetiza o Incwala:

É possível sentir a atuação das poderosas tensões que formam a vida nacional: rei e Estado contra povo e povo contra rei e Estado; o rei aliado aos plebeus contra os seus rivais, os irmãos-príncipes; plebeus aliados a príncipes contra o rei; a relação entre o rei e sua mãe e entre o rei e suas rainhas; e a nação unida contra inimigos internos e externos, numa luta pela sobrevivência com a natureza. Essa cerimônia não é apenas uma declaração maciça de união, mas também uma ênfase no conflito, uma afirmativa de rebelião e rivalidade contra o rei, com afirmações periódicas de união com o rei e retirada de poder do rei. A estrutura política é santificada na pessoa do rei, por ser essa estrutura a fonte de prosperidade e força que protege a nação interna e externamente. O rei é associado a seus ancestrais, pois a estrutura política se mantém através das gerações, embora reis e súditos nasçam e morram. A rainha-mãe [entre os Suazi, ela divide o reinado com o rei] o liga aos reis passados; suas rainhas o ligam aos reis futuros. Há outros elementos observáveis, mas já ficou claro que os Suazi acreditam que a representação simbólica e dramática das relações sociais, em toda a ambivalência destas, consegue unidade e prosperidade. (p.20)

Assim como fizera com a cerimônia em homenagem a Deusa Nonkubulwana, Gluckman trata a Incwala como um ritual de rebelião, só que agora falando mais explicitamente que os conflitos tem um papel ativo na estabilidade e na unidade da estrutura social. Esta é a tese central de Gluckman, melhor desenvolvida na parte final de sua conferência.

Gluckman diz estar diante de um mecanismo social que desafia sociólogos, psicólogos e biólogos, e ele se propõe a analisar a sociologia deste mecanismo,

O autor diz que os rituais de rebelião só vão ocorrer onde a ordem social estabelecida e suas instituições não são questionadas. As mulheres zulus não estavam, com a cerimônia de Nonkubulwana, querendo alterar a ordem social e seu papel na sociedade – todas elas ainda pretendiam casar-se, ter filhos e cuidar da roça, como mandava a tradição; da mesma maneira, na política africana, os homens eram rebeldes, jamais revolucionários. Nas disputas pelo poder, aqueles que desafiavam a autoridade pretendiam tomar o lugar desta, e não modificar as regras do jogo. Essas regras do jogo – a ordem social – é tida como algo certo, a “verdade”, às vezes num nível sagrado: a ordem social é a estrutura inerente da criação. E é essa forma de ver a sociedade, segundo Gluckman, que permite a existência de rituais de rebelião, que, ao contrário do que possa parecer, mais servia para destacar a coesão social do que para mostrar alguma eventual fragilidade dela.

O autor descreve o sistema social dos Suazi o como sendo repetitivo, porque a solução dos conflitos são resolvidos pela substituição das pessoas que ocupam os postos de comando e não pela alteração da ordem deste postos. Assim, quando os Suazi se envolvem em lutas pelo poder, acabam, não importam se posicionados contra ou a favor do rei, reforçando o reinado e a ordem monárquica.

E tanto a solução quanto a solução dessas tensões estão representadas no ritual de Incwala, pelo processo de crítica a autoridade e a redenção final como apoio a ela. Por isso que com reis jovens as cerimônias são mais simples: ainda não há, em tal soberano, força consolidada para ser exposta no ritual.

Gluckman ainda expande a dinâmica dos rituais de rebelião para situações de rebelião civil. Por exemplo, na maioria dos estados africanos não existem regras claras de sucessão ao trono, e as lutas pelo poder raramente levam a algum tipo de secessão. Mas neste ponto ele faz uma ressalva importante:

Quando um reino se torna integrado por uma complexa economia e por um sistema de comunicações rápidas, as intrigas palacianas podem prosseguir, mas os processos comparativamente simples de segmentação e rebelião são complicados por lutas de classes e tendências à revolução. O ritual de rebelião deixa de ser apropriado ou possível. (p. 27)

Antes de concluir sua conferência, o autor ainda ressalta alguns pontos que considera importantes:

a) As cerimônias ocorrem durante o período dos primeiros frutos e da colheita porém serem estes períodos em que a ordem social fica mais sensível. O período anterior é de fome; quando volta a abundância, nos períodos de colheita, há fortes estímulos de desagregação, sobretudo causados por brigas decorrentes do repentino acesso à comida. Outra razão é que as famílias se isolam em tempos de escassez de alimentos, e essa volta da abundância possibilita a retomada de atividades sociais, e os rituais destacados, reafirmando a ordem e a coesão social, permitem a liberação controlada das energias armazenadas;

b) Gluckman sugere as implicações psicológicas do ritual de Nonkubulwana no comportamento das mulheres, e como este ritual – com a inversão do papel feminino típico, bem como a própria identidade feminina da deusa – traduzem “a instabilidade potencial dos grupos e da vida doméstica” (p. 29).

c) Mencionando Fortes e Evans-Pritchard, Gluckman relaciona as novas colheitas com a coesão social, na cerimônia política. Interesses individuais podem comida podem se opor aos interesses da comunidade em que todos os seus membros sejam prósperos, pois para um indivíduo ter mais comida ele precisa de mais gado, terra e enxadas – e disputas por esses implementos podem ocorrer, desintegrando a sociedade. Como o interesse de todos é a paz e a obediência à Lei, e a estrutura política é quem garante a ordem e a paz, através de uma cerimônia que inaugure alimentos para todos, a ordem política de direitos e deveres interligados acaba sendo santificada.

Voltando a análise da impossibilidade ou da dificuldade da existência dos rituais de rebelião em algumas sociedades, Gluckman mostra que nas sociedades modernas (como a nossa) a fragmentação das relações sociais tanto impede a dramatização destas situações em papeis sociais simples, quanto abre a possibilidade de fuga para outro tipo de relação ou papel social, para escapar à pressão. Além disso, os mecanismos de expressão política da nossa sociedade minimizariam esses conflitos.

Concluindo, com Rituais de Rebelião no Sudeste da África, Gluckman insere a ideia de conflito como algo constituinte da própria estrutura social, e que nas sociedades apresentadas os rituais de rebelião agem tanto como uma celebração da ordem quanto como uma válvula de escape das tensões sociais, ou seja, antes como mecanismos de manutenção que como ingredientes das revoluções. Mesmo na nossa sociedade, onde ele fala que a luta de classes floresce, Gluckman parece confiar muito mais nos “mecanismos de expressão aberta de oposição” (sistema parlamentar, governos locais), do que numa transformação revolucionária da ordem. O conflito, para Gluckman, é uma força predominantemente conservadora.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Mais uma resenha

Devo deixar claro que não é minha intenção manter um blog de resenhas; mas enquanto o material inédito ainda está sendo produzido - ele estará aqui em breve, prometo - alimento meu tamagotchi (alguém se lembra?), senão com boas análises, pelo menos com ótimas sugestões de leitura.
Dessa vez, o livro de um gênio prematuro prematuramente morto, Pierre Clastres.




CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado: pesquisas em antropologia política. Trad. Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

“A Sociedade Contra o Estado” trata justamente disso: da sociedade contra o estado, em que grupos humanos ditos “primitivos” agem, deliberadamente, no sentido de se manterem como sociedades sem estado.

Publicado originalmente em 1974, o livro é a reunião de dez artigos publicados pelo antropólogo francês (formado na filosofia) Pierre Clastres, no decorrer da década anterior, acrescido de um capítulo final, com o mesmo título que o volume. Sua espinha dorsal é composta pela articulação entre o primeiro capítulo – que funciona como introdução – o último, que apresenta as conclusões e teorias do autor, e os outros nove capítulos, que, através da análise da organização social, da linguagem e da filosofia política (essa tripartição é feita por Tânia Stolze Lima e Marcio Goldman, no prefácio que escreveram para a edição brasileira da obra) dos índios da América do Sul (onde Clastres fizera seus trabalhos de campo), ajudam a construir a tese apresentada nos capítulos inicial e final.

Em “Copérnico e os Selvagens”, dialogando com o filósofo Jean-William Lapierre, Clastres questiona a noção comum na antropologia de que a divisão entre as sociedades “sem estado” e “com estado” existe numa gradação, sendo as primeiras mais arcaicas que as segundas. Para o autor, essa visão decorre de que nossa conceituação de poder está por demais vinculada à nossa ideia de estado como detentor dos meios de coerção – assim, ao tratarmos das sociedades primitivas, estaríamos falando antes de coerção do que de poder político propriamente. Como considera o “poder político como universal, imanente ao social” (p. 37), Clastres divide os poder político em coercitivo, caso da nossa sociedade, e não-coercitivo, caso das sociedades indígenas que nosso etnocentrismo não deixar perceber. Nesse mesmo artigo o autor expõe sua proposta por uma “antropologia geral da política” baseado nessa universalidade do poder político inerente ao social e consequentemente na sua precedência sobre o o fator econômico na determinação da estrutura social, o que o posiciona seu pensamento inversamente à ideologia marxista.

Os quatro capítulos posteriores tem como tema central a organização social dos índios da América do Sul, com exceção das que ele chama da sociedades elevadas – os Incas, que serão mencionados quase sempre à título de comparação, tanto aqui quanto no resto do livro.

“Troca e Poder: filosofia da chefia indígena” apresenta os elementos constitutivos da noção de chefe entre os índios: ele é, basicamente, alguém a quem é delegada a obrigação de apaziguar as disputas internas, a quem é obrigado a generosidade para com os demais membros do grupo, e alguém que deve ter o dom da palavra e a capacidade de contar histórias, em troca do direito de, na quase na totalidade das sociedades levadas em consideração por Clastres, ter mais de uma esposa. O chefe indígena é, enfim, alguém sem autoridade real, salvo em situações de guerra. No capítulo seguinte, “Independência e Exogamia” o autor refuta a noção de sociedade fragmentada em pequenos grupos, dos índios, ao discorrer sobre as regras exogâmicas dos mesmos. Nos mesmo sentido, “Elementos de demografia ameríndia” avalia os trabalhos dos viajantes do período colonial dos demógrafos posteriores com o intuito de fixar a verdadeira dimensão da população indígena à época dos descobrimentos – o tamanho das sociedades é importante para as ideias de Clastres. O último capítulo com temática majoritariamente voltada para a organização social, com uma escrita mais elaborada, próximo ao literário, é “O arco e o Cesto”, que fala das divisões encontradas dentro da sociedade Guayaki, foco do trabalho de campo Clastres. As formas de divisão social apresentadas deixam claro o caráter político delas – dentro da concepção de poder político do autor, obviamente.

Os capítulos “De que riem os Índios?” e “O Dever da Palavra” e “Profetas na Selva” tratam de como a linguagem se relaciona com o poder na sociedades primitivas. O primeiro, o papel educador das narrativas humorísticas; o segundo, desenvolvendo melhor a já citada obrigatoriedade do chefe indígena em ter retórica desenvolvida; e por fim, o terceiro fala do papel dos karai, os profetas tupi-guarani, nos grupos remanescentes dessa nação no Chaco paraguaio.

A questões de filosofia politica presentes no livro falam da cosmovisão dos índios e de seu processo de socialização. Em “Do Um sem o Múltiplo”, Clastres relaciona essa cosmovisão com o repúdio da unidade, do “Um”, da totalidade que é má em comparação com a multiplicidade, porque esta última consegue compreender, sem anular, a dualidade homens-deuses. “Da Tortura nas Sociedades Primitivas” o autor faz a ligação entre os dolorosos ritos de iniciação dessas sociedades e a a utilidade dessa dor como advertência ao desejo de poder.

Como já dissemos, Clastres sintetiza as ideias desenvolvidas no decorrer dos artigos anteriores no último capítulo, “A Sociedade contra o Estado”.

Denunciando o etnocentrismo presente da divisão das sociedades em “sem estado” e “com estado”, Clastres demonstra a sobrevivência dos conceitos evolucionistas na antropologia, forçando a crença numa gradação de “desenvolvimento” da sociedades no qual a Ocidental seria, com seu Estado e seu mercado, o ápice. Para ele, a técnica de uma sociedade tem o objetivo de adaptação às necessidades, e, dessa forma, todas as que existem, por ter tecnologia para tal, estão num mesmo patamar.

Estendendo essa crítica ao etnocentrismo subliminar da antropologia de seu tempo (não sabemos se é possível classificar suas ideias dentro do relativismo cultural stricto sensu, embora esteja claro, em várias passagens, de que lado se posiciona) aos hábitos e à economia dos índios, o autor aponta a impossibilidade de se compreender o processo de formação do trabalho alienado, das classes sociais e da coerção estatal pela perspectiva econômica, à maneira de Marx. Ao colocar o poder político como antecessor e determinante das relações econômicas e não o contrário, Clastres consegue, na nossa opinião, justificar a necessidade da constituição, como ciência, da sua antropologia geral da política.

Dentro desse contexto do poder político como infraestrutura é que Clastres fará sua observação mais interessante e preparará terreno para sua radical visão sobre as sociedades primitivas. Para o autor, é a natureza concentradora de poder do estado que gera as divisões hierárquicas dentro do seio de uma sociedade. No entanto, esse processo de concentração só pode surgir onde ele for, decididamente, inevitável. E, segundo Clastres, o que torna a concentração de poder inevitável é a expansão demográfica, que possivelmente provoca o surgimento de problemas e situações que não existiam antes, quando os grupos eram menores, forçando a transformação do chefe “à serviço da comunidade” para o chefe com real poder político.

E é nesse processo de formação do poder concentrador – o Um – que reside a observação mais importante do livro e talvez a mais original do pensamento de Clastres. Ele afirma que, quando os indivíduos de uma sociedade sem estado (em que o poder político está disperso em todas as pessoas, sendo o chefe apenas uma figura representativa do grupo social e, no máximo, um comandante para os tempos de guerra) percebem uma alteração social que possa desembocar numa maior concentração de poder político em alguém, ou seja, quando percebem a possibilidade da formação de um estado, eles podem se rebelar. Seja através de messianismo dos profetas karai, seja através do infanticídio e outras formas de controle populacional, seja através da dissolução em grupos menores, Clastres vê as sociedades sem estado deliberadamente lutando contra o seu surgimento.

“A Sociedade contra o Estado” é uma inspiradora combinação de etnologia, filosofia política e epistemologia, resultado de um período histórico no qual a intelectualidade sonhava em libertar a humanidade dos grilhões em que ela própria havia se acorrentado. O tempero claramente anarquista e antimarxista dos escritos de Clastres são a prova dessa intenção, e as eventuais fraquezas do trabalho devem ser creditadas mais à dificuldade na obtenção de dados sobre as comunidades indígenas e ao trabalho de se iniciar um novo – e extremamente abrangente – campo de pesquisa, que ao posicionamento ideológico que alguns poderiam considerar ultrapassado, datando-o prematura e injustificadamente.